Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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15/12/2015 (Nº 54) A ESCASSEZ DE ÁGUA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO PARA O CONSUMO RESPONSÁVEL
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O elemento financeiro e a Educação para o Consumo Responsável

A ESCASSEZ DE ÁGUA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO PARA O CONSUMO RESPONSÁVEL

Abdala Mohamed Saleh

Doutor em Física pela UNICAMP

Professor Associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR)

Departamento de Matemática e Estatística

Campus de Uvaranas - Av. General Carlos Cavalcanti, 4748 - CEP 84.030-900 - Ponta Grossa - Paraná – Brasil

(42)3220-3050

abdala.saleh@gmail.com

 

Pascoalina Bailon de Oliveira Saleh

Doutora em Linguística pela UNICAMP

Professora Associada da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR)

Departamento de Letras Vernáculas

Campus Central – Praça Santos Andrade, n. 1 – Centro - CEP 84.010-919

Ponta Grossa - Paraná – Brasil

(42)3220-3191

pbosaleh@gmail.com

 

 

Resumo

Este artigo discute a questão da escassez da água no âmbito da Educação para o Consumo Responsável, com ênfase na situação da região Metropolitana de São Paulo. Utiliza-se, para isto, o modelo ECR, que se constitui das vertentes Meio Ambiente, Saúde, Publicidade, Direito, Ética e a Financeira. A ECR é contextualizada em relação à educação ambiental e ao pensamento de Paulo Freire, enfatizando-se a sua concepção de ética e de responsabilidade, noções fundamentais na sua pedagogia crítica. Na vertente “Meio Ambiente”, apontam-se questões sobre a erosão e o desmatamento na bacia do rio Atibaia, colocando-se em pauta os benefícios pecuniários advindos da preservação da biodiversidade e dos recursos não madeireiros. Discute-se a “Saúde” da população focando-se no uso do volume morto. Em “Direito”, retomam-se aspectos legais de natureza nacional e internacional, ligados à água, e como eles são aplicados no Brasil. Aborda-se a “ética das águas” do ponto de vista acadêmico e das tradições e vivências de agricultores. Não se discute a “Publicidade”, pois não foi possível identificar nenhum material que se adequasse ao objetivo do trabalho.

Palavras-chave: Escassez de água. Consumo responsável. Ensino.

 

 

1.    Introdução

 

A água é um elemento essencial para a nossa sobrevivência, sem ela não podemos produzir alimentos que nos dão a condição de vida. Esta afirmativa é óbvia à primeira vista, mas a compreensão do que está nela implicado demanda uma análise acurada.  

Especialistas estimaram a “água virtual” - aquela que usamos sem perceber - necessária no processo de produção dos alimentos: carne de boi (17.100 litros/kg), arroz (2.500 litros/kg), banana (500 litros/kg), tomate (105 litros/kg), etc. Há situações de consumo em que a água aparece de forma menos explícita ainda. Por exemplo, um aparelho eletroeletrônico consome água durante o seu uso, pois obtém energia elétrica das usinas hidrelétricas por meio do movimento das turbinas, que transformam a energia hidráulica em mecânica (CZAPSKI, 2008).

Como aponta Czapski (2008), nem sempre nos damos conta da diversidade de usos e problemas relacionados à água com os quais convivemos cotidianamente. Isto pode ser verificado no caso de uso doméstico, industrial, na agricultura e pecuária, na navegação de rios e oceanos, no transporte de carga e de pessoas, em usinas hidrelétricas, no turismo e lazer.

A distribuição de água em nosso planeta é de 97,5% em água salgada, 1,8% em geleiras e 0,615% em água apta para consumo. Desta última, no Brasil 69% vai para a agricultura, 23% para a indústria e 8% para beber. Embora as indústrias e as cidades gastem menos, são mais poluentes (CZAPSKI, 2008).

Os ciclos hidrológicos não são uniformes, isto é, os níveis de concentração de água são desiguais entre os países e nos limites de um mesmo país, como é o caso do Brasil. Muitas vezes, também, não se dispõe de um tratamento sanitário adequado para garantir a saúde das populações. O Brasil possui 12% de toda a água doce do mundo e ela é distribuída (não igualmente) entre os estados: 72% na região Amazônica, 16% no Centro Oeste, 8% no Sul e Sudeste e 4% no Nordeste. O mais grave é que 37% da água tratada é desperdiçada, o que equivale à necessidade de França, Bélgica, Suíça e norte da Itália juntos. De acordo com Barlow (2009 apud BOFF, 2015), no século passado a população global triplicou, enquanto o consumo da água cresceu sete vezes. A previsão é de que em 2050 tenhamos mais 3 bilhões de pessoas e que, apenas para o uso humano, necessitemos de 80% a mais de água, embora não saibamos de onde ela virá.

O desafio para se encontrarmos formas de viabilizar o futuro está posto, mas, nesse entremeio, estamos assistindo, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, uma situação de escassez de água que nos traz muita preocupação, lembrando-nos de que não temos outra opção senão mudar o nosso padrão de consumo da água.  Ocorre que, em última instância, repensar o consumo da água, é repensar o consumo como um todo.

Há um discurso de ampla circulação que se afirma contra a sociedade do descarte. Simbolizado pelo morfema re - reciclar, reduzir, reusar, reflorestar (que aproxima outras formas na qual o morfema não está presente, como respeitar), enfatiza as ações a que remetem esses verbos, as quais têm sido, porém, pouco praticadas em nosso cotidiano, como alerta Boff (2015). Ou seja, esse discurso não tem sido capaz de produzir novos sentidos (ORLANDI, 2012) para o consumo, inclusive da água.

A partir do que foi tratado acima e a visão de consumo responsável, mais especificamente do modelo de Educação para o Consumo Responsável (ECR) + financeiro (SALEH; SALEH, 2013), este texto aborda a atual problemática da escassez de água na Grande São Paulo. O modelo ECR visa contribuir com o processo de conscientização dos cidadãos, desejando se constituir como uma ferramenta que auxilie professoras e professores na sua tarefa de promover meios para o desenvolvimento de uma atitude crítica de crianças e adolescentes em relação ao mundo que o cerca, instando-os a refletir sobre os papéis desempenhados pelas empresas, produtos e serviços, de forma a favorecer o exercício da cidadania. Neste sentido, a Educação para o Consumo Responsável (ECR) diz respeito à reflexão teórico-metodológica com o objetivo de viabilizar processos pedagógicos que propiciem o exercício e o aperfeiçoamento na utilização de bens e serviços de empresas ou indivíduos, respeitando-se princípios que objetivem a manutenção ou restauração do bem estar coletivo e individual (SALEH & SALEH, 2010; SALEH & SALEH, 2012; SALEH & SALEH, 2013).

Vale enfatizar que a ECR deve ser também entendida dentro de um contexto que vai além da questão estritamente ambiental. Esse entendimento já é, em certo sentido, comum à maioria dos educadores e educadoras que se voltam para esse tema. Dados obtidos em pesquisa junto ao público do V Fórum Brasileiro de Educação Ambiental (DÉCADA, 2005), por exemplo, indicam que, apesar de o campo abrigar perspectivas divergentes[i], se tem cada vez mais defendido que a questão ambiental deve contemplar aspectos além dos puramente ecológicos, incluindo, dentre outros, os temas sociais e econômico. Esse posicionamento sugere uma compreensão de natureza como elemento socialmente construído de forma conjunta com o homem: o natural intocado inexiste. Nesse contexto, o foco tem se deslocado da “dinâmica ser humano x natureza ou, ainda, sociedade x natureza” em direção à “sociedade x meio geográfico [...]” (PITANO; NOAL, 2009, p. 283).

Paulo Freire (2000, p. 67), educador fundamental nas nossas reflexões, é enfático quando se refere ao nosso “dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e florestas”. Tais princípios devem balizar qualquer atividade ligada à educação ambiental (ou ecológica). Porém, as implicações dessa posição de Paulo Freire só podem de fato ser compreendidas no contexto mais amplo do seu pensamento que pressupõe que todos nós, independentemente do grupo econômico ou social a que pertencemos, somos chamados a responder por nossos atos.

Tal responsabilidade decorre do fato de que, como afirma Freire, somos seres éticos, pois “Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper [...].” (FREIRE, 2011, p. 34). Essa condição, de acordo com o educador, nos impõe pensar certo, o que implica realizar o percurso que vai da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, movimento de construção do conhecimento que abre espaço para a dúvida e para o reconhecimento do erro, e, portanto, para a provisoriedade do conhecimento.  Nesse processo, constitutivo de uma pedagogia da autonomia, forjamos a nossa consciência crítica e o que aprendemos ganha sentido.

Na ECR a questão ambiental é considerada conjuntamente com a Saúde e Segurança, a Publicidade, o Direito, a Ética e a vertente financeira, todos referidos ao consumo. Vale ressaltar que a ECR situa a dimensão ética como o elemento que permeia e relaciona entre si a avaliação de todos os aspectos envolvidos no consumo.

Esperando contribuir para o desenvolvimento da criticidade dos alunos, este artigo pretende discutir algumas questões que podem ampliar o debate sobre o tema no contexto educacional, recortando especificamente a problemática da escassez da água. Considerando as diversas vertentes da ECR, a análise da situação de escassez será guiada pelas seguintes questões:    

·         Como ocorre a degradação e a mitigação da água nos reservatórios?

·         Como a água e o sistema que a opera podem influenciar a saúde dos consumidores?

·         Qual é o estatuto legal da “água” no âmbito internacional e nacional? Como tal legalidade pode ser vista no Brasil?

·         Qual a implicação ética ao se tomar a água como propriedade pública ou privada?

 

2.    Aspectos metodológicos: o modelo ECR

 

Em nossas discussões temos trabalhado com um modelo (Figura 1) cujo objetivo tem sido o de ressaltar a inter-relação dos diversos aspectos relacionados ao consumo (SALEH; SALEH, 2012; SALEH, 2010). A concepção desse modelo foi norteada pela coleção do Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia) e IDEC (Instituto de Defesa do Consumidor), que é constituída de quatro fascículos contendo cinco temas: Meio Ambiente (INMETRO; IDEC, 2002a), Saúde e Segurança (INMETRO; IDEC, 2002b), Publicidade (INMETRO; IDEC, 2002c), Direito e Ética (INMETRO; IDEC, 2002d). Por sua vez, a coleção dialoga com os Temas Transversais (Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual e Trabalho e Consumo), os quais devem permear todas as disciplinas e que, dada a sua urgência social, compõem os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998).

Adotando uma postura de consumidor responsável e valendo-nos do referido modelo, examinamos (SALEH; SALEH, 2012; SALEH, 2010) um caso-exemplo, a Ambev, classificada com a maior indústria cervejeira da América Latina e “Referência mundial na gestão da água” (ALMEIDA, 2007). Procuramos evidenciar que o cuidado com o Meio Ambiente, no caso a água, embora necessário, é insuficiente para se caracterizar uma empresa como responsável e que as demais vertentes (Saúde, Publicidade, Direito e Ética) devem ser levadas em conta nesse processo.

Em um segundo momento (SALEH; SALEH, 2013), notamos que havia a necessidade de se incluir o fator financeiro no âmbito do consumo responsável e, portanto, do modelo ECR, que passaria a ser designado por modelo ECR + financeiro e representado pelas Figuras 1 e 2.

 

 

Figura 1 – Modelo que descreve a “Educação para o Consumo Responsável” (ECR) e envolve as vertentes: (1) e (2) - Meio Ambiente; (3) e (6) - Saúde e Segurança; (4) e (5) - Publicidade; (1) - (6) o Direito e a Ética.
Figura 2 – Aspecto financeiro da “Educação para o Consumo Responsável” (ECR) que equivale à expressão PreçoECR. As vertentes da Figura 1 compõem os preços individuais - pontas da estrela - da equação PreçoECR.
 

A Figura 2 evidencia que todos os aspectos incluídos no modelo ECR podem ter implicações financeiras, diretas ou indiretas, para a produção e para o consumo. Embora saibamos que no decorrer do processo, da retirada até o consumo da água, haja compra e venda de produtos e serviços e, portanto, a consolidação de preços, nem sempre é possível considerar a quantidade “preço” de forma direta, por isso abordaremos o “aspecto financeiro” de forma mais geral, uma vez que este engloba a quantidade “preço”.

Vale lembrar ainda algo que foi dito na introdução, isto é, embora a Ética, ao lado do Direito, seja representada como um dos vértices da ECR, ela perpassa todos os aspectos implicados no consumo, relacionando-os entre si.

Em Saleh & Saleh (2013) analisamos diferentes fatos ou situações noticiadas pela mídia - aumento de preços de alimentos e bebidas, tempo reduzido de consultas médicas, normas para a publicidade que contenha apelos de sustentabilidade e utilização de mão de obra escrava pela indústria da moda -, procurando identificar nestas situações a dinâmica entre o aspecto financeiro e as demais vertentes que compõem a ECR.

     

3.       Situando a crise de abastecimento de água na região Metropolitana de São Paulo

 

O Sistema Cantareira, cuja capacidade total é de 1,165 trilhões de litros, é um dos maiores sistemas produtores de água do mundo, sendo responsável pelo abastecimento de 9,86 milhões de pessoas, dos quais mais de 80% operado pela Sabesp[ii] (A CRISE, 2014). Fazem parte do complexo as represas Jaguari e Jacareí (interligadas), Cachoeira, Atibainha, Paiva Castro e Águas Claras, além da estação de tratamento de Guaraú. Outros sistemas atendem a região da grande São Paulo, sendo eles, em ordem de relevância: Guarapiranga, Alto-Tietê, Rio Claro, Rio Grande, Alto-Cotia, Baixo-Cotia e Ribeirão Estiva (PERGUNTAS, 2014).

No início de 2014, devido à contínua e histórica queda de disponibilidade de água, a Agência Nacional de Águas[iii] (ANA) e o Departamento de Água e Energia Elétrica de São Paulo[iv] (DAEE) definiram que deveria haver uma redução da vazão máxima de captação de água do sistema, de 31 para 27,9 m3/s, a partir de 10 de março de 2014. A Sabesp, então, utilizou água dos sistemas Guarapiranga e Alto Tietê para abastecer os habitantes que consomem água do sistema Cantareira[v].

A crise de abastecimento de água que aflige São Paulo, particularmente a capital, decorreu, segundo o Ministério Público, da ausência de organização do governo Paulista frente a mais grave estiagem desde 1953. Como foi noticiado pela mídia, ao final de outubro de 2014 o Sistema Cantareira estava apenas com 3% de sua capacidade. Além disso, segundo o Instituto de Pesquisa Datafolha, em meados daquele mês, entre os residentes em casa, subiu para 67% a taxa dos que ficaram sem água alguma vez. (TERMÔMETRO, 2014).

De acordo com a Ação Civil Pública Ambiental impetrada pelo Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo, em 30/09/2014:

 

A significativa redução das precipitações no estado de São Paulo, outrossim, já era fenômeno DETECTADO HÁ ANOS, sem que as medidas para a redução das vazões de retirada tenham sido implantadas pelos órgãos gestores (ANA/DAEE)  e pela operadora do sistema produtor (SABESP), visando à preservação daquele manancial (MINISTÉRIO, 2014, grifo do autor).

 

            Assim, o procedimento adequado do governo do Estado de São Paulo e da Sabesp deveria ter sido o de, em 2004, ao obter a concessão para uso do Cantareira, planejar e investir em novas fontes de captação para evitar a atual crise. De acordo com a Portaria DAEE no 1.213, de 06 de agosto de 2004:

 

ARTIGO 16 - A SABESP deverá providenciar, no prazo de até 30 (trinta) meses, estudos e projetos que viabilizem a redução de sua dependência do Sistema Cantareira, considerando os Planos de Bacia dos Comitês PCJ e AT (SÃO PAULO, 2004).

 

            O governo projetou o Sistema Produtor São Lourenço, cujo edital de concorrência foi lançado em 2012, a fim de aumentar em 5 m3/s o sistema de abastecimento, porém a sua execução está atrasada. Como sugere o trecho da ação impetrada pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, a crise poderia ter sido evitada, entre outras medidas, com o incentivo do uso racional da água, bem como a alteração do modo de cobrança (mais desperdício, conta mais cara e mais economia, mais barata) e a redução do desperdício de água no sistema de distribuição (PERGUNTAS, 2014).

            Do ponto de vista do mercado financeiro, as ações da Sabesp pertencem 50,26% à Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo e o restante, 49,47%, ao setor privado. O percentual de ganho dos acionistas é de no máximo 25% do lucro líquido, definido pelo conselho de gestão da empresa, que é indicado pelo governo. Um fato que chama a atenção é que nos últimos anos a Sabesp vem pagando um percentual acima do máximo definido (PERGUNTAS, 2014). “Segundo o Ministério Público, do total de dinheiro enviado aos acionistas, 73% é obtido com a venda da água retirada do Cantareira” (PERGUNTAS, 2014).

            O caso acima é mais um exemplo de que a nossa vida cotidiana e a atividade básica de consumo estão subjugadas ao mundo financeiro, sendo que este não é tão visível aos nossos olhos. A água, “elemento puro da natureza”, que garante a existência da vida humana, vem sendo submetida ao mesmo modelo, que se coloca em primeiro plano em relação aos interesses da população. A condução da crise hídrica sugere que a pressão da população sobre os governos tem sido insuficiente para superar aquela oriunda dos grandes interesses financeiros.

 

4.    Resultados e Discussão

 

Nesta seção, tendo como referência o modelo ECR + financeiro, referente às Figuras 1 e 2 (SALEH; SALEH, 2013), analisaremos aspectos da escassez de água na região Metropolitana de São Paulo, a fim de problematizar os processos que dizem respeito a cada viés do modelo e as possíveis inter-relações que eles mantêm entre si.

Utilizaremos diversos tipos de fontes de informação, acadêmicas e não acadêmicas, apontadas em nossas Referências e Sites Consultados, respectivamente. Com isto pretendemos garantir amplitude dos aspectos contemplados, bem como propor uma trajetória de análise que seja dinâmica, acessível e didática. Ressaltamos que o viés Publicidade não será abordado por não ter sido possível identificar nenhum material que se adequasse ao objetivo do trabalho. Cabe salientar ainda que é impossível esgotar um assunto tão complexo, amplo e polêmico como o da crise hídrica de São Paulo.

 

4.1.        Meio Ambiente – (1) e (2) do modelo ECR

 

Do ponto de vista da ação do homem em relação aos sistemas naturais, podem-se tratar de algumas situações que dizem respeito a localidades relacionadas ao sistema Cantareira.

Historicamente, na bacia do rio Atibaia[vi] (nas bacias dos rios Cachoeira e Atibainha) o desmatamento aconteceu já no século XIX através das plantações de café. Após esta etapa instalou-se a pastagem, já que a agricultura mecanizada era inviável devido às declividades. A vegetação inicial era de Mata Atlântica, alternando entre Floresta Ombrófila densa e mista e mais recentemente de mata secundária. O clima da região é subtropical de altitude.

Nesta região, há o favorecimento de processos erosivos, pois a maior parte da área apresenta 20 a 45% de declividade, em relevo montanhoso. Isto aliado a uma geologia local que consiste de rochas do complexo cristalino (PEREIRA; TEIXEIRA FILHO, 2009).

Com base em Pereira & Teixeira filho (2009), através de trabalho de Geoprocessamento e pesquisas de campo, é possível apresentar um panorama da situação em que podem ser identificados os seguintes aspectos que cobrem um período total de 19 anos (1986-2005):

1) Bacia do rio Cachoeira: mata nativa e pastagem substituídas por silvicultura (aumento de 14%) e o desmatamento correspondeu a 9% da área total;

2) Bacia do rio Atibainha: aumento de silvicultura em 20% e o desmatamento foi de 17% da área total;

Em ambas as bacias a maior parte dos agricultores (de acordo com entrevistas realizadas de outubro de 2006 a janeiro de 2007) desenvolveu tanto a pastagem como a silvicultura, dando-se preferência à última devido à expectativa de um melhor retorno financeiro. Neste sentido, havia um indicativo de que os processos erosivos poderiam se intensificar ainda mais do que o que já ocorria em 2005, já que o desmatamento tenderia a um aumento gradativo.

3) Classes de suscetibilidade à erosão nas áreas de estudo:

a.    Entre 1986 e 2005: áreas de alto risco tiveram um aumento significativo de 14%. Porém, os comportamentos das bacias foram distintos entre si, 11% em Cachoeira e 19% em Atibainha.

b.    No âmbito da distribuição espacial, em dois tempos, 1986 e 2005: houve avanço das áreas suscetíveis à erosão nesses 19 anos.  Além disso, estas áreas aumentaram nas proximidades das maiores porções de matas nativas e nas proximidades dos reservatórios de abastecimento, a jusante (rio abaixo) de ambas as bacias.

 

Enfim, os itens acima evidenciam, no espaço-tempo, a consolidação e intensificação da degradação dos reservatórios de água, que pertencem ao sistema Cantareira (PEREIRA; TEIXEIRA FILHO, 2009). Embora seja impossível tratarmos em um único artigo sobre o conjunto do sistema Cantareira, podemos inferir que condições semelhantes à acima desenhadas devem se repetir, em maior ou menor grau, na parte restante do sistema.

Do ponto de vista financeiro, os processos erosivos gerados pelo desequilíbrio da biodiversidade nas bacias do rio Cachoeira e Atibainha prejudicam a qualidade/quantidade de água disponibilizada ao Sistema Cantareira. Reverter este quadro requer investimentos que, certamente, são mais onerosos que conservar os recursos naturais de forma racional.

            Nos últimos anos, surgiu uma série de mecanismos e instrumentos de implantação com o objetivo de garantir o desenvolvimento sustentável e a conservação, como por exemplo, a Lei n. 9.433/1997 que cobra pelo uso e descarga de efluentes (BRASIL, 1997). Esta lei será detalhada na Seção Direito e Ética e segue o princípio do Poluidor-Pagador cujo enfoque é punitivo. Contudo, há uma abordagem que é considerada mais eficiente e que segue o princípio do Conservador - Recebedor (VILAR; OLIVEIRA; JACOVINE, 2011).

O princípio do Conservador - Recebedor segue a seguinte estrutura: por um lado há os Fornecedores de Serviços Ambientais (produtor de águas, moradores de Unidades de Conservação, produtor rural) que têm um custo de oportunidade e de manutenção; por outro lado, os Beneficiados pelos Serviços Ambientais, que percebem e valorizam o benefício gerado e se propõem a pagar um valor maior ou igual ao custo de oportunidade e de manutenção. Esta interação entre Fornecedores e Beneficiados define o que se chama de PSA (Pagamento por Serviços Ambientais). A compensação ou pagamento direto dentro do princípio do Conservador - Recebedor pode ocorrer na forma de transferência direta de recursos financeiros, favorecimento na obtenção de créditos, isenção de taxas e impostos, etc. (VILAR; OLIVEIRA; JACOVINE, 2011).

            Por que se justifica tratar do PSA quando se analisa a problemática da escassez da água e, mais especificamente, no sistema Cantareira? Vejamos o exemplo do município de Extrema em Minas Gerais. Grande parte da água que chega ao Sistema Cantareira e abastece a Grande São Paulo vem do município mineiro, através do rio Jaguari. O projeto “Conservador das Águas” (EXTREMA, 2009) foi premiado, em 2013, pela ONU por ser considerado um das mais importantes práticas de conservação do mundo (PROJETO, 2014). 

Os agricultores recebem compensação financeira pela conservação de nascentes com recursos do Fundo Municipal para Pagamentos por Serviços Ambientais de Extrema, ONGs e dos governos estadual e federal. Houve um aumento espantoso de contratos. Em 2008, havia 40 contratos de 40 propriedades conservadoras de água que representavam 1,2 mil hectares. Em 2013, essas propriedades representavam 7,3 mil hectares (9 mil estádios do Maracanã). Houve melhoria nas técnicas e nos recursos humanos disponíveis (PROJETO, 2013). Como exemplo de adesão já consolidada em quatro anos de programa, tem-se um criador de gado que abriu mão de 30 cabeças para áreas reflorestadas, protegidas pelo projeto e como compensação recebe R$1,6 mil (PROJETO, 2014). As nove nascentes de sua fazenda são capazes de abastecer 6 mil pessoas na Cidade de São Paulo (PROJETO, 2014).

Esse tipo de projeto teria grande utilidade para reduzir os danos ocasionados pelo desmatamento, bem como pela migração para a silvicultura, no caso dos agricultores da bacia do rio Atibaia. Como dissemos, eles abandonaram a produção de leite e encamparam a silvicultura, o que é prejudicial para a conservação das águas. Obviamente outras políticas seriam necessárias, mas chamamos a atenção para essa por se tratar de uma iniciativa importante e já não tão recente, mas ainda pouco divulgada.

 

4.2.        Saúde e segurança – (3) e (6) do modelo ECR

 

            Neste tópico será considerada a questão da saúde dos consumidores que dependem da água do Sistema Cantareira. Iniciaremos pela problemática da utilização do volume morto. Este volume, de 400 bilhões de litros, fica abaixo do nível de captação das comportas e uma bomba suga a água desta região enviando-a, através de túneis, para as estações de tratamento. No caso do volume morto, a depender da análise da água, é necessário repetir várias vezes o processo padrão de filtrar, decantar e colocar cloro, cal, sulfato de alumínio e flúor. Além disso, é necessária uma quantidade maior de produtos químicos. Infelizmente, segundo os especialistas, todo este processo não anula eventuais metais pesados da água: chumbo, mercúrio, cádmio, etc. Ao corpo humano, estes metais podem causar problemas no sistema nervoso, fígado, rins, dores abdominais, inflamação dos pulmões, paralisia nas mãos, perda de visão e câncer (MARANHÃO; RAMALHOSO, 2014).

Além dos efeitos deletérios para a saúde, do ponto de vista ambiental, o volume morto tende a causar o esgotamento das bacias dos rios com risco de haver uma recuperação muito demorada. Em termos financeiros, mesmo não tendo eficiência totalmente garantida, o gasto para se tratar do volume morto é de 40% maior do que o tratamento normal (MARANHÃO; RAMALHOSO, 2014). Além disso, o prejuízo financeiro advém também dos gastos com a saúde da população que consome água imprópria, além de faltas ao trabalho.

Mas, ainda que brevemente, é preciso considerar que a escassez de água pode comprometer a saúde também de diversas outras formas. Uma delas é quando se utiliza de água captada da chuva para preparar alimentos ou para beber. Nessas condições, especialmente nas grandes cidades, agrega-se à água uma série de substâncias venenosas e até mesmo vírus e bactérias prejudiciais à saúde (FIGUEIRAS, 2013).

Há que se considerar ainda outra problemática de grande relevância: o armazenamento da água, seja a fornecida pela empresa oficial, seja a água da chuva, em condições inadequadas, pode levar, a uma maior proliferação de mosquitos e, consequentemente, ao aumento dos casos de doenças como a dengue (XAVIER, 2010), o que, aliás, tem ocorrido em grande escala na Grande São Paulo, como noticiado pela mídia. Obviamente, assim como na utilização do volume morto, ambas as situações tem conseqüências financeiras não só com os gastos com saúde, mas de ausências ao trabalho.  

 

4.3.        Direito e Ética – (1) a (6) do modelo ECR

 

            Inicialmente, é pertinente levantar, no âmbito da legislação, a forma como a água é vista. Do ponto de vista internacional, evidenciamos a resolução da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidades (ONU) de 28 de Julho de 2010 - Resolução A/RES/64/292:

 

1.    Reconhece o direito à água potável e limpa e ao saneamento como um direito humano que é essencial para o pleno gozo da vida e todos os direitos humanos;

2.    Exorta os Estados e organizações internacionais a fornecer recursos financeiros, capacitação e transferência de tecnologia, por meio de assistência e cooperação internacional, em particular para os países em desenvolvimento, a fim de ampliar os esforços para fornecer água potável, limpa, acessível e barata e saneamento para todos (ASSEMBLY, 2010, tradução nossa). 

 

Em relação ao Brasil, é preciso explicitar a lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, mediante seus fundamentos:

 

Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I - a água é um bem de domínio público;

II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;

III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;

IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;

V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;

VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades (BRASIL,

1997).

Os aspectos contemplados no recorte da resolução da ONU e da lei nacional acima decorrem de uma questão ética: a água é fundamental à vida e, como tal, deve ser garantida a todos os seres humanos. Nesse sentido, é, por exemplo, um ataque ao direito e à ética colocar o interesse financeiro acima do dever e da responsabilidade de garantir água de boa qualidade a toda população.

Contudo, os vértices Direito e Ética nos sugere trazer à discussão dados mais pontuais. Um deles refere-se a uma situação vivida por moradores num bairro de periferia da Zona Leste de São Paulo, o Itaim Paulista. Eles relatam, em reportagem, que passam até duas semanas com apenas duas horas de água por dia ou com pouca pressão nas torneiras. Além disso, passaram a receber, a partir de 09/02/2015, a conta de água com multa por consumo acima da média (CARDOSO, 2015). A sobretaxa foi autorizada em 07/01/2015 pela Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp). Ela é de 40% para aqueles que consumirem até 20% e de 100% acima de 20%. A multa é sobre a metade do valor total da conta, já que a outra metade se refere ao serviço de coleta de esgoto. A média é feita de fevereiro de 2013 até janeiro de 2014.

O caso apontado está sendo averiguado e rebatido pela Sabesp, no entanto, para estes casos a Proteste (Associação de Consumidores) entende que a Sabesp teria o dever de informar o consumidor antes de cobrar a multa. Isto para que ele tenha como justificar o consumo acima da média. A Proteste (PROTESTE, 2015) lembra ainda que os consumidores que já efetuaram os pagamentos das contas com sobretaxa podem requerer a restituição em dobro do valor cobrado, levando o que assegura o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990).

            A situação acima contraria o que dita a Resolução da ONU (A/RES/64/292), isto é, que a água deve ser potável, limpa, acessível e barata e que se deve garantir o saneamento para todos. Esta ideia é corroborada pela avaliação da relatora da ONU, que aponta restrições de fornecimento da água e rodízios como um desrespeito aos Direitos Humanos, uma vez que, nesses casos, as empresas estão excluindo parcela da população do acesso adequado à água (LOPES, 2014).

            Nessa direção, outro ponto que devemos notar se refere à diferença de tratamento dada aos grandes consumidores de água e aos consumidores de pequeno volume e de menor poder aquisitivo.

Recentemente, foram divulgados, à revelia da Sabesp, nomes de 500 clientes que recebem prêmios elevados por seu alto nível de gasto de água por mês. Esta situação seria impensável já que São Paulo passa por uma grave crise hídrica. A Sabesp toma esta atitude para evitar que estes grandes consumidores utilizem água de poços artesianos, o que faria com que a empresa perdesse lucratividade. Em números, por mês e considerando-se quatro membros por família, temos, por exemplo: Shopping Eldorado, que gasta o equivalente a 1.200 famílias e a fábrica de celulose Viscofan, do Morumbi, cujo gasto corresponde a 3.600 famílias. Em termos de descontos, isso significa 55% para o Eldorado e 75% para o Viscofan (ABRAHÃO, 2015). Isto é, aos grandes consumidores o aumento de consumo de água gera recompensa, aos demais, a punição financeira e moral.

            Por outro lado, como podemos compreender a “ética das águas”?

 

“Presumivelmente a natureza já existia antes da economia moderna. Por isso a natureza é em si gratuita, não tem preço” escreveu Robert Kurz (2002: 11) sobre as relações entre economia e natureza. Esta afirmação é semelhante à concepção dos lavradores de comunidades rurais de várias regiões de Minas Gerais. Eles comentam: “Água é um berço da natureza de Deus e todo mundo, gente ou bicho, pode usar” (lavrador do vale do São Francisco). “A água é dom de Deus, todo mundo deve saciar dela: cede para o vizinho, cede para quem precisar” (lavrador do vale do Jequitinhonha). “Deus deixou a água gratuita. Por que a gente pode cobrar?” (agricultora da serra da Mantiqueira) (RIBEIRO; GALIZONI, 2011, p. 84, grifo nosso).

 

O trecho acima apresenta o ponto de vista tanto de um filósofo alemão, crítico do capitalismo contemporâneo, como dos lavradores, em relação ao uso da água. Estes últimos trazem consigo o conhecimento que vem de suas tradições e vivências. Nota-se claramente que ambas as visões convergem no sentido de uma Ética da natureza (e da água). Ética que regula/conceitua o uso, a distribuição e o valor econômico que se deve dar à água e, nesta perspectiva, todos podem usar a água sem pagar por ela. Segundo Ribeiro & Galizoni (2011, p. 84) “As famílias podem usar a fonte que percorre sua área de domínio; porém, não são donas absolutas da água, não devem, do ponto de vista ético, acumular um bem que não foi criado pelo trabalho, portanto que não lhes pertence exclusivamente”. Ainda, segundo os autores:

 

O domínio sobre a água não se circunscreve ao indivíduo, mas transita como dom para a coletividade - "Deus deixou água para todo mundo" -, e traz embutido o preceito de que a gestão deve acontecer no âmbito da comunidade. Por isso "ninguém manda na água", os usos e negociações de acesso são submetidos a servidões comunitárias, e o mando se exerce por meio de normas que constantemente precisam ser flexibilizadas para darem conta das situações novas que surgem (RIBEIRO; GALIZONI, 2011, p. 85, grifos do autor).

 

Parece-nos que o mais interessante dos excertos acima é o que eles trazem da concepção dos lavradores, na qual prevalece um profundo senso ético e que aponta para uma direção totalmente contrária à que tem prevalecido no gerenciamento da água do Sistema Cantareira, uma vez que neste caso a água é dominada por um pequeno grupo de integrantes - Sabesp, grandes empresas e o mercado financeiro. Fazendo trocadilho com os trechos acima, podemos dizer: “a água tem preço” e “alguns poucos mandam na água”.

A escassez de água na Grande São Paulo, segundo relata Eduardo San Martin, diretor de meio ambiente da Fiesp - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo  (BORGES, 2014) -,  já levou à perda de 3.000 (três mil) empregos,  reduzindo o ritmo de produção e produtividade das empresas. Embora não estejamos falando de uma situação limite, é bastante razoável imaginar que a escassez de água na região Metropolitana de São Paulo possa levar a migrações obrigatórias. A interferência direta na vida de tantas pessoas é mais um dado a ser levado em conta quando analisamos a problemática da escassez de água do ponto de vista ético.

 

5.    Conclusões

 

Neste trabalho, procuramos encaminhar uma análise de um conjunto de aspectos que estão relacionados à escassez de água, enfatizando a atual situação da grande São Paulo.  Foi possível traçar um cenário cujos elementos apresentam propriedades distintas entre si, embora a unidade daqueles tenha sido respeitada. Em outras palavras, utilizamos um modelo de Educação para o Consumo Responsável (ECR), cujo papel foi definir a direção das perguntas a fim de permitir ampliar a compreensão do problema da escassez de água. As vertentes, mencionadas ao longo do texto, Meio Ambiente, Saúde e Segurança, Direito e Ética e o aspecto financeiro (este foi convenientemente integrado a cada vertente) serviram de base às diversas análises que se desenrolaram no texto. Não foi possível abordar a Publicidade, por não termos conseguido localizar nenhum material publicitário adequado aos objetivos do trabalho.

Respectivamente às vertentes acima, os temas tratados foram: 1) degradação da bacia do Rio Atibaia (do Sistema Cantareira) e alternativas de mitigar tal degradação; 2) consequências do uso do volume morto para a saúde da população; 3) na temática do Direito consideramos essencial revisitar a lei internacional que determina a água como um Direito Humano e a lei no Brasil que define a Política Nacional de Recursos Hídricos. Expusemos um exemplo prático de fornecimento e cobrança de água pela Sabesp que desrespeita a legislação acima; e, finalmente, 4) tratamos da “Ética das águas” do ponto de vista acadêmico e popular (envolve vivências e tradições de comunidades), sendo que ambas convergem no sentido da defesa da gratuidade da água. Esta Ética enfatiza que a água não é refém de um ou mais donos absolutos, ou seja, não pode ser reduzida a um bem de uma minoria.  Enfim, não deve haver um controle particular da água.

Como dissemos na introdução do texto, a ECR posiciona a dimensão ética de forma explícita, como a componente que atravessa e estabelece entre si todas as vertentes relacionadas ao consumo, e é aqui entendida na esteira do pensamento de Paulo Freire, que permite conceber o consumo como uma ação que necessariamente resulta em responsabilidade, da qual não podemos escapar: “Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo” (FREIRE, 2011, p. 20). Porém, como vimos, a ética não está dissociada da nossa condição de seres histórico-sociais e da nossa capacidade crítica, daí a nossa responsabilidade em relação à educação dos nossos alunos e alunas, de forma a contribuir para que possam produzir novos sentidos sobre o consumo.  

É necessário relembrar que o intuito deste trabalho foi mostrar uma trajetória didática de abordagem de um assunto tão complexo, como a escassez de água, de forma a oferecer uma alternativa de encaminhamento para os profissionais da educação no contexto da Educação para o Consumo Responsável. Embora abordados em seções separadas, por uma questão metodológica, os aspectos analisados estão estreitamente relacionados entre si. Além disso, o modelo ECR constitui-se não como um fim em si mesmo, mas como uma proposta que evidencia a necessidade de problematizar a complexidade de um ato de consumo. Problemas diversos demandarão análises e/ou soluções também diversas.

Embora o foco do nosso trabalho seja a educação para o consumo, esperamos que tenha ficado claro que propor essa educação só faz sentido porque a mesma ética que conduz a avaliação do consumidor deve nortear toda a cadeia produtiva e de serviços.

           

6.    Referências Bibliográficas

 

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[i] A pesquisa visava conhecer a opinião dos participantes do evento sobre uma possível mudança de denominação de Educação Ambiental (EA) para Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS), buscando identificar também os argumentos em que se sustentavam as suas posições, haja vista que as duas denominações representam perspectivas que divergem na abordagem do tema. Para entender esse debate, conferir, entre outros, Década (2005), Ialei (2009) e Loureiro (2004).

[ii] Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo.

[iii] A ANA regula, apoia, gerencia, monitora, planeja e desenvolve programas e projetos ligados aos recursos hídricos. Disponível em:

 <http://www2.ana.gov.br/Paginas/institucional/SobreaAna/Default.aspx>.  Acesso em: 06 mar. 2015.

[iv] Órgão gestor dos recursos hídricos do Estado de São Paulo.

[v] Um histórico das medidas do governo em relação à escassez de água, em função do tempo, está disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2015.

[vi] Inclui os municípios de Camanducaia (MG), Joanópolis (SP), Piracaia (SP) e Nazaré Paulista (SP); na área de nascentes da bacia do rio Atibaia, sub-bacia do rio Piracicaba (localização da bacia no Estado de São Paulo). Disponível em: < http://www.grude-sp.org.br/nossa-luta/>. Acesso em: 31 ago. 2015.

Ilustrações: Silvana Santos