Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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20/12/2003 (Nº 7) PAPEL: IMPACTOS E ALTERNATIVAS
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Papel: impactos e alternativas

Papel: impactos e alternativas

 

 

Sumário

 

Este documento é dividido em três partes. Na primeira descrevo sucintamente o que é o papel; na segunda, como se produz o papel branco convencional, apontando algumas das conseqüências sociais e ambientais do processo; por fim, compartilho a experiência pessoal de visitar uma fábrica de papel 100% reciclado 100% pós-consumo e não alvejado. Anexo, elaborei uma pequena lista de contatos que possibilitam maior aprofundamento no assunto.

 

 

 

 

Parte I

O que é papel?

           

O papel é uma descoberta engenhosa e muito antiga. Os primeiros registros conhecidos a respeito de sua criação datam do primeiro século DC na China, mas não se sabe se é anterior a isso (referência 1).

            Trata-se basicamente de um material extremamente flexível e fino, produzido a partir de fibras de celulose vegetal. As fibras de celulose são “fios” compridos, podendo medir vários centímetros e flexíveis, obtidas a partir de plantas ou árvores. São muitas as plantas que contém fibras adequadas para papel (para mais detalhes, veja referência 2). Para obter as fibras da planta, basta mergulhá-la em água e triturá-la: a ligação inter-fibras é muito mais fraca (são ligações químicas do tipo pontes de hidrogênio) que a intra-fibras, de modo que a partir de uma trituração rápida, temos as fibras soltas diluídas em água. O papel é basicamente o depósito dessas fibras altamente diluídas (para deixar cada fibra envolta por água e, portanto, com toda a sua área de contato apta a formar novas pontes de hidrogênio) em fôrmas com fundo perfurado como uma peneira fina, de modo que a água lentamente se esvai, e as fibras vão, pouco a pouco, se alinhando e se ligando. O papel já ganha sua consistência característica, e, para chegar ao seu estado final, é posto para secar (para se completar a eliminação de água) e eventualmente é prensado, a quente ou a frio, para ganhar mais polidez e homogeneidade superficial.

            O papel pode ter diferentes “gramaturas”, ou seja, espessuras, conforme as fibras e o processo de deposição das mesmas, quando diluídas em água, na fôrma (ou esteira, no processo industrial): maior quantidade (gramas por metro quadrado) da solução água+fibras acarreta em um papel grosso ao fim do processo.

 


Parte II

O papel branco de fibras virgens

 

II.1 – Produção

            O papel que comumente encontramos no mercado é fruto de um processo de produção industrial de larguíssima escala (na referência 3 há informações sobre o volume da produção da International Paper Brasil – que fabrica o papel Chamex). Há duas características de sua produção que merecem ser destacadas: a matéria‑prima e o alvejamento do papel. O restante do processo segue como descrito na Parte I, com máquinas de sucção, esteiras e cilindros quentes que aceleram enormemente o processo de secagem.

 

i) Matéria-prima do papel branco de fibras virgens

            Até algumas décadas atrás, qualquer árvore era usada para a fabricação industrial do papel. Áreas extensas de mata, sendo derrubadas para gado e agriculturas extensivas (cana, café, soja...), tinham sua madeira vendida às indústrias de papel. Tendo praticamente exaurido, no Brasil, as possibilidade de extração de madeira virgem, graças a leis ambientais, passou‑se a “produzir” matéria‑prima para a indústria: foram criadas as chamadas áreas de reflorestamento, em que árvores são plantadas para proverem as fábricas de papel com fibras de celulose, num sistema de rodízio (no próprio local onde foram cortadas as árvores, plantam-se novas).

Entretanto, ao invés de serem verdadeiras florestas, são na verdade monoculturas de eucaliptos, uma árvore de rapidíssimo crescimento (em três anos já pode ser cortada) e boa adaptação a diferentes climas. Portanto, hoje em dia existem gigantescos eucaliptais no Brasil, que ocupam áreas de tirar o fôlego, maiores que alguns estados brasileiros. Eucaliptais têm sido implantados também para se tornarem carvão, abastecendo indústrias siderúrgicas.

 

ii) Alvejamento do papel

            A madeira – que serve de matéria‑prima ao papel – é composta por 50% de celulose (pigmentada), 30% de lignina e 20% de outros óleos e carbohidratos (referências 2 e 4). A lignina é um óleo protetor da madeira, que “dá liga” ao material, aumentando sua flexibilidade e resistência. Esta substância é responsável pelo gradual amarelamento da madeira que ocorre quando esta é exposta à luz. Costuma-se eliminar a lignina da madeira no processo industrial de produção do papel branco virgem. Existem três maneiras de fazê-lo: a termo-mecânica (por pressão e temperatura), a termo-química (por temperatura e produtos químicos), e a química (por produtos químicos exclusivamente). Os produtos químicos que menos danificam as fibras de celulose são algumas substâncias derivadas de cloro, e o processo que garante maior produtividade atualmente é o termo-químico.

            Eliminada a lignina, costuma-se também alvejar o papel, ou, em outras palavras, despigmentar as fibras de forma a deixá-las “albinas”, ou brancas. Para isso é necessário um tratamento químico, que costuma envolver novamente o uso de derivados de cloro, consistindo em um banho da polpa da madeira (já sem lignina) diluída em água, para partir então à esteira de secagem. A água com os pigmentos “seqüestrados” pelo banho químico é então tratada e descartada.

 

 


           

Na figura 1 podemos ver um esquema simplificado de produção de papel virgem e branco. O processo 1 consiste em descascar e picar os tocos de madeira em pequenas rodelas (como chips); o 2 é o processo termo-químico de retirada da lignina; o 3 é diluição em água, formando uma papa – com consistência de mingau – de polpa de madeira; o 4 é o tratamento químico de alvejamento; o 5, de lavagem dos resíduos; e o 6 consiste no processo de secagem da polpa na esteira, passando por cilindros quentes que aceleram a secagem.

 

 

 

II.2 Impactos sócio-ambientais do papel branco de fibras virgens

 

Produtos clorados

            O uso de cloro para eliminar a lignina é muitíssimo danoso, pois do processo são emitidas substâncias nocivas à vida, conhecidas por dioxinas. Existem muitos tipos de dioxina, dos quais muitos são estudados e outros ainda permanecem desconhecidos. Vários subprodutos que constituem a base química de produtos banidos em muitos países, como o DDT, estão entre estas substâncias. O que se sabe é que são altamente cancerígenas, além de afetarem o sistema neurológico.

            Em meados da década de 90, uma grande campanha contra o uso de produtos clorados em processos industriais, levou à criação de “selos”, como o TCF (Totally Chlorine‑Free) que garantiam que o processo de determinado produto não fazia uso de substâncias cloradas. As indústrias de papel virgem e branco, entretanto, forjaram argumentos “científicos” duvidosos para manter o uso de substâncias cloradas, mas que não emitem as dioxinas mais famosas e conhecidas, por terem desenvolvido um sistema de “seqüestro” das mesmas antes que fossem lançadas ao ar. Foi criado, então, o selo ECF (Elemental Chlorine‑Free), que hoje é amplamente usado. Sabe-se, porém, que os funcionários e moradores dos arredores de indústrias sentem irritação nos olhos e nos pulmões, as folhas das árvores ficam com uma camada preta, são emitidas dioxinas desconhecidas, das quais não se tem estudo dos impactos na saúde. (referência 5)

            Portanto, o papel branco que compramos tem usualmente o selo ECF ou nenhum selo (o que implica que usa produtos clorados indistintamente).

 

Matéria-prima: os eucaliptais

            As indústrias de papel branco virgem costumam alardear que preservam a natureza por obterem sua matéria‑prima através das “áreas de reflorestamento”: campos gigantescos de monocultura de eucaliptos.

            Ao contrário de serem verdadeiras florestas, estas monoculturas são um deserto extremamente danoso a inúmeras formas de vida[1]. São conhecidas por populações circunvizinhas no nordeste brasileiro como demônios verdes (referência 6), apelido que não deixa de ter sentido:

            - Sendo uma flora sem diversidade alguma, não oferece condições de sobrevivência à enorme maioria de animais silvestres. Sobrevivem apenas alguns pequenos roedores, abelhas e um enorme contingente de formigas, que nessa situação desequilibrada tornam-se uma praga.

            - Por terem crescimento muito rápido, os eucaliptais exigem muitos nutrientes do solo. Para isso, têm raízes pivotantes (raízes que pouco se ramificam, descendo verticalmente no solo) muito profundas, que sugam muitíssima água. Resultados: em pouco tempo, faz-se sentir a existência de um eucaliptal na região pelo desaparecimento gradual de olhos d´água e secamento de lençóis freáticos, cruciais à sobrevivência das populações da região, principalmente no sertão (onde há muitos eucaliptais!)

            - Muitos eucaliptais foram plantados em chapadas (no sertão), terras que tradicionalmente não tinham dono, (referência 7) e eram usadas pelas populações rurais de seu entorno como reserva de diversos frutos (provendo complementaridade de nutrientes, especialmente de vitaminas e proteínas vegetais, às suas pequenas roças familiares), caça e madeira. Depois da agressiva implantação dos eucaliptais, as famílias passaram a depender ainda mais de produtos externos, e por isso de dinheiro, dificílimo de conseguir. Opção: êxodo para grandes cidades ou locomoção sazonal para colheitas de café e cana nas grandes plantações do estado de São Paulo.

            - Meninas-mata-formiga: Necessitando de dinheiro, meninas entre 10 e 18 anos aceitam o trabalho de passar o dia inteiro andando nos labirintos de eucaliptais procurando formigueiros e jogando venenos. Este veneno á altamente tóxico, e elas não recebem nenhum tipo de proteção, além de um salário miserável (referência 6).

            - Com o tempo, o solo dos eucaliptais vai se empobrecendo radicalmente, e usa-se adubação química intensiva, de todos os tipos. Mesmo assim, quando nem a adubação resolve, as reflorestadoras abandonam o local, deserto, em busca de novas áreas.

 

 


Parte III

Alternativas

 

            Mas por que milhares de toneladas por dia de papel branco continuam sendo produzidas? Poderia se dizer que se trata de um mal necessário, já que é a única maneira de produzir papel de boa claridade e qualidade em ritmo industrial. Mas não é verdade: existem alternativas, e não são poucas. O que impede a opção por um papel menos impactante à vida são interesses econômicos e preconceitos culturais. Apenas para dar alguns exemplos:

1)        papel reciclado pós-consumo: há papéis de excelente qualidade para impressoras e embalagens nesta categoria.

2)       Polpa de outras plantas ou restos, como bagaço de cana.

3)       Papéis mistos: fibras virgens e recicladas.

4)       Papéis não alvejados, ou TCF (100% sem uso de cloro).

 

Este texto foi originalmente impresso em papel 100% reciclado, pós-consumo e sem uso de nenhum tipo de alvejante. É o papel KAETÉ, produzido pela IPAR (Recicladora de papéis ararense), cuja produção é exclusivamente de papéis reciclados pós-consumo (i. e., que já passaram pela mão de usuários finais e foram descartados. Há papéis reciclados pré-consumo, chamados também recuperados, que são restos que sobram dentro das indústrias de papel virgem e que voltam ao início do processo, não sendo descartados).

Curioso por saber como este papel reciclado era produzido, decidi visitar a fábrica em 2001, para confirmar se o papel que estava usando (inclusive para a defesa de minha dissertação de Mestrado em Física pela Unicamp) era realmente harmônico à vida.

A visita que fiz foi muito rica, deixando-me uma ótima impressão da fábrica, e me entusiasmado mais ainda a usar o seu papel. Compartilho abaixo alguns aspectos que me chamaram a atenção na IPAR.

Sua produção consiste exclusivamente de papel reciclado 100% pós-consumo. São produzidos papéis de diversas qualidades e espessuras: desde papéis escuros para embalagens até o papel KAETÉ, de ótima qualidade, destinado a impressão (uso doméstico em impressoras, publicações, etc.)

O ponto crucial para conseguir manter um padrão no papel produzido é a separação dos diversos tipos de papel velho que recebem. Os fornecedores (instituições, empresas, etc.) são fixos, e, ao longo do tempo, aprenderam a fornecer o papel bem separado e catalogado (por exemplo: tetrapak, papel branco sem tinta, papel branco com tinta – impresso –, caixa de ovo, jornal, entre muitas outras categorias). Conhecendo bem o material que constituirá a matéria-prima do novo papel, é possível criar “receitas de bolo” para produção de papéis em homogêneos e de vários tipos.

O processo é inteiro termo-mecânico: por rotações, centrifugação, pressão e calor vão sendo eliminados os “contaminantes” (grampos, filmes plásticos, cola de encadernação, pequenos metais, etc.) e pouco a pouco temos uma papa de celulose bem diluída em água. Não é aplicada nenhuma química para alvejamento, apenas uma muito diluída solução de sulfato de alumínio e óleo de madeira para impermeabilizar o papel KAETÉ. Esta papa é então jogada na esteira para secagem, passando por sucção e cilindros que apressam o processo, encerrando num enorme cilindro quente, que dá maior polidez a um dos lados do papel.

O ciclo da água é totalmente fechado: toda a água usada volta ao início do processo, de maneira que nem uma gota de água vai para a rede pública de esgotos. Por causa da evaporação, tem que se injetar sempre nova água no início do processo, junto com a reaproveitada.

O papel resultante fica enrolado numa grande bobina que tem as bordas cortadas para ficar reto. Estes restos (a base da bobina e o papel cortado) voltam para o início do processo e vira novo papel.

Os materiais que foram retirados do papel velho durante o processo – os “contaminantes” – são mandados para uma fábrica em Piracicaba, que prensa-os e fabrica telhas onduladas, casinhas de cachorro, finas paredes divisórias, totalmente reciclados. Assim, o envio de lixo da IPAR ao lixão é extremamente reduzido! Eu via esta preocupação em todos os âmbitos: não havia, por exemplo, copinhos descartáveis para café e água, mas sim xícaras e copos de vidro!

Além de tudo isso, gostei do clima do lugar: é antigo (a IPAR tem 62 anos) e muito familiar. São 110 funcionários ao todo e não há aquele ambiente de “produção a qualquer custo”, pressa ou competição (posso estar enganado, já que só fui lá uma vez e passei apenas uma tarde).

Enfim, comparado-os aos da produção do papel branco e virgem, os impactos são imensamente menores no uso de energia, de produtos químicos e de água. E o papel é bonito e muito bom.

Espero ter contribuído com este texto,

Carinho,

 

Daniel Tygel (dtygel@yahoo.com)

Campinas, inverno de 2001 (revisto no verão de 2003)

“O homem pode ser responsável,

Portanto é responsável.

Hans Jonas

 

 

Referências

 

1 – History of paper (Conservatree)

http://www.conservatree.com/learn/Papermaking/History.shtml

 

2 – Evironment and paper (Earthdesign)

http://www.earthdesign.com.au/enviro/paper.html

 

3 – International Paper do Brasil

http://www.internationalpaper.com.br

 

4 – How paper is made (International Paper)

http://www.internationalpaper.com/our_businesses/paper/how_paper.shtml

 

5 – Página do Greenpeace

http://www.greenpeace.org

 

6 – CAPPIO, Frei Luiz Flávio; MARTINS, Adriano; KIRCHNER, Renato (orgs.). Rio São Francisco: uma caminhada entre vida e morte. Petrópolis: Vozes, 1995

 

7 – MARTINS, José de Souza. Fronteira; a degradação do outro nos confins do humano. SP: Hucitec, 1997

 

8 – Exemplo: Papel reciclado usado como material escolar (em alemão)

http://www.umwelt.org/robin-wood/index.htm

 

9 – Coalizão de empresas e instituições com muitas informações a respeito de papel reciclado: análises, testes em impressão, etc.

http://papercoalition.org



[1] Existem várias pesquisas acadêmicas (natadamente na ESALQ – USP de Piracicaba) que propões formas de muito menor impacto para plantio de eucaliptais. Por exemplo, mantendo-se uma maior distância entre os eucaliptos e mantendo uma mata mediana (abaixo dos eucaliptos) que serve como corredor ecológico e fonte de biodiversidade. Mas para isso a ganância deve ser menor, pois os eucaliptos devem ser cortados de maneira menos sistematizada (comumente são cortadas à máquina, em massa) e com mais mão-de-obra, ou seja, um a um, de modo a não destruir a mata subjacente aos eucaliptos. Aqui me refiro aos eucaliptais que normalmente existem no país. Algumas empresas costumam deixar algumas ilhas ou corredores isolados de mata entre largas extensões de eucaliptais, o que não resolve o problema, já que o sistema acaba ficando isolado.

Ilustrações: Silvana Santos