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A transversalidade bate à porta, artigo de Washington
Novaes
Não se assuste, leitor, se qualquer dia desses o mexilhão interromper o
fornecimento de energia ou água em sua casa. Ou se, ao recolher um copo de água
num riozinho, der de cara com um mexilhão dourado. Será a transversalidade da
questão ambiental - de que tanto tem falado a ministra Marina Silva - batendo
à sua porta.
Washington Novaes é jornalista especializado em meio-ambiente
(wlrnovaes@uol.com.br).
Artigo publicado em 'O Estado de SP':
Com freqüência cada vez maior, ouvem-se queixas de empresários com respeito
à 'demora excessiva' nos licenciamentos ambientais - principalmente de
megaprojetos na área de energia - ou a 'exigências descabidas' nos mesmos
processos. Duas histórias de origens inteiramente diversas, mas que se juntaram
para produzir efeitos muito preocupantes, aconselhariam mais prudência aos
queixosos.
A primeira história começa na década de 1970, quando tímidos protestos sobre
prováveis conseqüências ambientais com a construção da barragem de Itaipu
foram proibidos na comunicação pelo punho cerrado da ditadura da época.
Principalmente os protestos contra o desaparecimento, sob as águas do reservatório,
do mitológico Salto de Sete Quedas.
A segunda história ninguém sabe exatamente quando começou, nos portos de Rio
Grande e Buenos Aires, com a chegada do mexilhão dourado (Limnoperna fortunei),
molusco trazido da China em águas de lastro de navios despejadas nos portos,
que subiu rios e se espalhou.
Hoje, as duas histórias se juntam no lago de Itaipu (e em outras partes), tão
complicadas que, para enfrentá-las e fazer cessar prejuízos muito graves,
entre muitas outras coisas exigiram a formação de uma força-tarefa com
representantes de dez órgãos federais, governos de Estado e de municípios,
representantes de Itaipu e de países vizinhos.
Ao longo de décadas, o reservatório de Itaipu vem acumulando sedimentos
carreados nas águas de dezenas de sub-bacias que ali escoam. E juntamente com o
solo erodido pelas monoculturas chegam fertilizantes químicos do solo e
nutrientes orgânicos contidos nos efluentes de bovinos e suínos.
São 70 a 80 mil toneladas anuais de sedimentos em algumas bacias, até 5 milhões
a 6 milhões anuais nas maiores - que vão representar pesados custos nas próprias
sub-bacias de origem, principalmente com a reposição da fertilidade do solo
por insumos químicos e com a degradação de rios também utilizados para
abastecimento.
Além de levarem a uma perda progressiva na capacidade de armazenamento do
reservatório, esses sedimentos criam no lago da hidrelétrica um ambiente muito
propício à eutroficação da água, que gera proliferação descontrolada de vários
organismos, principalmente algas. Criam-se ameaças ao próprio abastecimento de
água de Foz do Iguaçu (60% depende do reservatório). À pesca. Ao turismo. E
se cria um ambiente muito favorável à proliferação do mexilhão dourado, que
se infiltra nas tubulações da usina, provoca paralisações, exige substituição
de equipamentos, gera perdas econômicas.
Há dez anos, quando se fez uma primeira medição da quantidade de mexilhões
que subiram o rio e chegaram a Itaipu, eles eram dois por metro quadrado da
superfície (a profundidade é de muitas dezenas de metros).
Chegaram a 80 mil. Hoje são entre 40 mil e 50 mil por metro quadrado. Ameaçam
espalhar-se pelas sub-bacias e comprometer centenas de reservatórios de
abastecimento de água, assim como tanques de aqüicultura e pesca. Uma herança
pesada que vem de longe para a atual administração de Itaipu. Esta já
promoveu até encontros internacionais em busca de soluções. E está
implantando um programa nas sub-bacias para replantar matas ciliares, reduzir a
erosão, os efluentes sem tratamento e o carreamento de sedimentos para o
reservatório, evitar a degradação dos rios.
Mas ainda não tem soluções para o drama do mexilhão dourado. Com seus
filamentos - lembra no boletim SeproNews o professor Rodrigo De Filippo, da
Universidade Federal de São Carlos, que avalia impactos ambientais -, ele é
capaz de aderir a muitos tipos de estrutura, inclusive ao interior de tubulações
e a cascos de barcos de pesca e barcaças que transitam pela bacia do Prata.
Como não tem por aqui predador que contenha sua proliferação, chegou ao Rio
Paraguai, na foz do Rio Cuiabá; à usina hidrelétrica Sérgio Motta (Porto
Primavera), entre Mato Grosso e SP; à Lagoa dos Patos e a rios que nela deságuam,
no Rio Grande do Sul; ao Rio Uruguai; às tubulações e filtros do Depto.
Municipal de Águas e Esgotos de Porto Alegre; à usina de Yaciretá, entre
Paraguai e Argentina, e a muitos outros lugares - sistemas de captação de água
para abastecimento, emissários submarinos de esgotos, colunas de sustentação
de pontes, estruturas portuárias e turbinas elétricas.
E pode ir muito mais além - inclusive à hidrovia Paraná-Tietê -, se não for
contido pela força-tarefa de tantos órgãos. Até aqui, o pouco que se tem
conseguido é aplicar cloro às águas de resfriamento nas usinas, para
enfraquecer o mexilhão ainda em sua fase de larva, dificultar a reprodução.
O Comitê de Proteção do Ambiente Marinho da Organização Marítima
Internacional só agora estuda normas para uma convenção internacional sobre
gestão e controle de espécies exóticas em águas de lastro dos navios. Deverá
incluir a troca obrigatória de água de lastro dos navios a mais de 200 quilômetros
da costa.
Não terminam aí os pesadelos herdados pelos dirigentes de Itaipu. Cerca de
1.300 agricultores do entorno do lago entraram na Justiça exigindo indenizações
no valor de R$ 1,4 bilhão, para compensá-los de alegados prejuízos com alterações
no microclima que teriam sido provocadas pela obra.
Mudanças no nível de umidade do ar e na temperatura, no regime de ventos, na
evaporação e na irradiação teriam gerado aumento da temperatura, aquecimento
do solo, déficit hídrico, redução da produtividade (tanto mais grave quanto
mais perto do lago a área). Itaipu tem alegado que não há base científica
para a reivindicação, que caberá à Justiça avaliar.
Dores de cabeça, portanto, não faltam. Em quase todas elas, por falta de
estudos adequados na época do licenciamento - assim como pela imprevisão de
danos na navegação marítima em tempos globalizados.
Não se assuste, leitor, se qualquer dia desses o mexilhão interromper o
fornecimento de energia ou água em sua casa. Ou se, ao recolher um copo de água
num riozinho, der de cara com um mexilhão dourado. Será a transversalidade da
questão ambiental - de que tanto tem falado a ministra Marina Silva - batendo
à sua porta.
(Fonte: O Estado de SP, 12/12) - Mensagem enviada ao GEAI/Grupo
de Educação Ambiental da Internet