Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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20/12/2003 (Nº 7) A transversalidade bate à porta, artigo de Washington Novaes
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Nova pagina 1 A transversalidade bate à porta, artigo de Washington Novaes

     
Não se assuste, leitor, se qualquer dia desses o mexilhão interromper o fornecimento de energia ou água em sua casa. Ou se, ao recolher um copo de água num riozinho, der de cara com um mexilhão dourado. Será a transversalidade da questão ambiental - de que tanto tem falado a ministra Marina Silva - batendo à sua porta.

Washington Novaes é jornalista especializado em meio-ambiente
(wlrnovaes@uol.com.br).

Artigo publicado em 'O Estado de SP':

Com freqüência cada vez maior, ouvem-se queixas de empresários com respeito à 'demora excessiva' nos licenciamentos ambientais - principalmente de megaprojetos na área de energia - ou a 'exigências descabidas' nos mesmos processos. Duas histórias de origens inteiramente diversas, mas que se juntaram para produzir efeitos muito preocupantes, aconselhariam mais prudência aos queixosos.

A primeira história começa na década de 1970, quando tímidos protestos sobre prováveis conseqüências ambientais com a construção da barragem de Itaipu foram proibidos na comunicação pelo punho cerrado da ditadura da época.

Principalmente os protestos contra o desaparecimento, sob as águas do reservatório, do mitológico Salto de Sete Quedas.

A segunda história ninguém sabe exatamente quando começou, nos portos de Rio Grande e Buenos Aires, com a chegada do mexilhão dourado (Limnoperna fortunei), molusco trazido da China em águas de lastro de navios despejadas nos portos, que subiu rios e se espalhou.

Hoje, as duas histórias se juntam no lago de Itaipu (e em outras partes), tão complicadas que, para enfrentá-las e fazer cessar prejuízos muito graves, entre muitas outras coisas exigiram a formação de uma força-tarefa com representantes de dez órgãos federais, governos de Estado e de municípios, representantes de Itaipu e de países vizinhos.

Ao longo de décadas, o reservatório de Itaipu vem acumulando sedimentos carreados nas águas de dezenas de sub-bacias que ali escoam. E juntamente com o solo erodido pelas monoculturas chegam fertilizantes químicos do solo e nutrientes orgânicos contidos nos efluentes de bovinos e suínos.

São 70 a 80 mil toneladas anuais de sedimentos em algumas bacias, até 5 milhões a 6 milhões anuais nas maiores - que vão representar pesados custos nas próprias sub-bacias de origem, principalmente com a reposição da fertilidade do solo por insumos químicos e com a degradação de rios também utilizados para abastecimento.

Além de levarem a uma perda progressiva na capacidade de armazenamento do reservatório, esses sedimentos criam no lago da hidrelétrica um ambiente muito propício à eutroficação da água, que gera proliferação descontrolada de vários organismos, principalmente algas. Criam-se ameaças ao próprio abastecimento de água de Foz do Iguaçu (60% depende do reservatório). À pesca. Ao turismo. E se cria um ambiente muito favorável à proliferação do mexilhão dourado, que se infiltra nas tubulações da usina, provoca paralisações, exige substituição de equipamentos, gera perdas econômicas.

Há dez anos, quando se fez uma primeira medição da quantidade de mexilhões que subiram o rio e chegaram a Itaipu, eles eram dois por metro quadrado da superfície (a profundidade é de muitas dezenas de metros).

Chegaram a 80 mil. Hoje são entre 40 mil e 50 mil por metro quadrado. Ameaçam espalhar-se pelas sub-bacias e comprometer centenas de reservatórios de abastecimento de água, assim como tanques de aqüicultura e pesca. Uma herança pesada que vem de longe para a atual administração de Itaipu. Esta já promoveu até encontros internacionais em busca de soluções. E está implantando um programa nas sub-bacias para replantar matas ciliares, reduzir a erosão, os efluentes sem tratamento e o carreamento de sedimentos para o reservatório, evitar a degradação dos rios.

Mas ainda não tem soluções para o drama do mexilhão dourado. Com seus filamentos - lembra no boletim SeproNews o professor Rodrigo De Filippo, da Universidade Federal de São Carlos, que avalia impactos ambientais -, ele é capaz de aderir a muitos tipos de estrutura, inclusive ao interior de tubulações e a cascos de barcos de pesca e barcaças que transitam pela bacia do Prata. Como não tem por aqui predador que contenha sua proliferação, chegou ao Rio Paraguai, na foz do Rio Cuiabá; à usina hidrelétrica Sérgio Motta (Porto Primavera), entre Mato Grosso e SP; à Lagoa dos Patos e a rios que nela deságuam, no Rio Grande do Sul; ao Rio Uruguai; às tubulações e filtros do Depto. Municipal de Águas e Esgotos de Porto Alegre; à usina de Yaciretá, entre Paraguai e Argentina, e a muitos outros lugares - sistemas de captação de água para abastecimento, emissários submarinos de esgotos, colunas de sustentação de pontes, estruturas portuárias e turbinas elétricas.

E pode ir muito mais além - inclusive à hidrovia Paraná-Tietê -, se não for contido pela força-tarefa de tantos órgãos. Até aqui, o pouco que se tem conseguido é aplicar cloro às águas de resfriamento nas usinas, para enfraquecer o mexilhão ainda em sua fase de larva, dificultar a reprodução.

O Comitê de Proteção do Ambiente Marinho da Organização Marítima Internacional só agora estuda normas para uma convenção internacional sobre gestão e controle de espécies exóticas em águas de lastro dos navios. Deverá incluir a troca obrigatória de água de lastro dos navios a mais de 200 quilômetros da costa.

Não terminam aí os pesadelos herdados pelos dirigentes de Itaipu. Cerca de 1.300 agricultores do entorno do lago entraram na Justiça exigindo indenizações no valor de R$ 1,4 bilhão, para compensá-los de alegados prejuízos com alterações no microclima que teriam sido provocadas pela obra.

Mudanças no nível de umidade do ar e na temperatura, no regime de ventos, na evaporação e na irradiação teriam gerado aumento da temperatura, aquecimento do solo, déficit hídrico, redução da produtividade (tanto mais grave quanto mais perto do lago a área). Itaipu tem alegado que não há base científica para a reivindicação, que caberá à Justiça avaliar.

Dores de cabeça, portanto, não faltam. Em quase todas elas, por falta de estudos adequados na época do licenciamento - assim como pela imprevisão de danos na navegação marítima em tempos globalizados.

Não se assuste, leitor, se qualquer dia desses o mexilhão interromper o fornecimento de energia ou água em sua casa. Ou se, ao recolher um copo de água num riozinho, der de cara com um mexilhão dourado. Será a transversalidade da questão ambiental - de que tanto tem falado a ministra Marina Silva - batendo à sua porta.
(Fonte: O Estado de SP, 12/12) - Mensagem enviada ao GEAI/Grupo de Educação Ambiental da Internet

Ilustrações: Silvana Santos