Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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04/09/2014 (Nº 49) PERCEPÇÕES DE AMAZÔNIA: O OLHAR DO PÚBLICO NO 1º SALÃO DE HUMOR DA AMAZÔNIA
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Percepções de Amazônia: O olhar do público no 1º Salão de Humor da Amazônia

PERCEPÇÕES DE AMAZÔNIA: O OLHAR DO PÚBLICO NO

1º SALÃO DE HUMOR DA AMAZÔNIA

 

Moana Luri de Almeida1

André Ribeiro de Santana2

Márcia Francineli da Cunha Bezerra3

Luiza Nakayama4

 

1 Mestro em Antropologia, Universidade de Fukuoka, Japão. 4-5-2 B301 Kashii-hama, Higashi-ku, Fukuoka-shi 813-0016. E-mail: moanaluri84@yahoo.com.br.

2 Doutor em Educação em Ciências e Matemáticas pelo PPGECM, IEMCI/UFPA, integrante da Sala Verde Pororoca/ICB/UFPA. E-mail: mestredeo@yahoo.com.br.

3 Doutoranda em Ciência Animal pelo PPGCA, NCADR/UFPA. E-mail: m.francineli@ig.com.br.

4 Doutora orientadora no PPGECM - IEMCI/UFPA e PPGCA - NCADR/UFPA, responsável pela Sala Verde Pororoca. Universidade Federal do Pará, Campus do Guamá, Rua Augusto Corrêa, n° 1, 66075-110. E-mail: lunaka@ufpa.br, sverdepororoca@ufpa.br.


RESUMO:

Neste artigo, investigamos que percepções o público do 1º Salão de Humor da Amazônia tem sobre a Amazônia. As análises dos questionários indicaram que maioria dos entrevistados confundem a Região Amazônica com a Floresta Amazônica e 45% acham que a importância do Salão está na denúncia ao desmatamento. Assim, concluímos que vários estereótipos ainda prevalecem no imaginário das pessoas.

 

Introduçao

 

Os povos da amazônia

Idealizado pelo cartunista paraense Biratan Porto, o 1º Salão de Humor da Amazônia (www.salaohumordaamazonia.com) ocorreu no período de 25 a 30 de março de 2008, em Belém – Pará, tendo como tema “Ecologia no Traço”.

Almeida et al. (2010) investigaram de que modos a Amazônia foi retratada nos 70 cartuns do 1º Salão de Humor da Amazônia, constatando que o evento embora tenha contribuido para a divulgação do desenho de humor, propagou também uma percepção ambiental de Amazônia essencialmene naturalista e como um problema a ser resolvido, pouco enfatizando a complexidade natural e social da região.

Neste artigo, propusemos-nos a estudar como a Amazônia é compreendida pelo público desse evento, lembrando que os povos da Amazônia “são diversos - indígenas, caboclos, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, migrantes, gente das grandes cidades e das pequenas aldeias que habitam os mais diversos ambientes” (FONSECA; NAKAYAMA, 2010, p.45).

 

 

CAMINHOS METODOLÓGICOS

Conduzimos nosso estudo associando a análise quantitativa (para os dados socioeconômicos) e a qualitativa (para as percepções sociais de Amazônia) dos entrevistados, permitindo, dessa forma, uma visão holística da percepção ambiental amazônica do público do 1º Salão de Humor da Amazônia.

A análise qualitativa se mostrou um método adequado para esta investigação, haja vista que os testemunhos individuais são amostras da consciência coletiva, segundo Minayo; Sanches (1993) e que essa análise envolve elementos como: atitudes, crenças, hábitos, opiniões, representações e valores; para nós, essa concepção significa que os discursos não devem ser apenas descritos, mas também compreendidos e explicados em seu contexto sociocultural.

As coletas de dados foram realizadas, na Estação das Docas, durante o evento, pela primeira autora desse trabalho, que abordou os visitantes ao perceber que já haviam completado a visualização de todos os cartuns do Salão de Humor. Após explicar o objetivo da pesquisa, solicitou o preenchimento do questionário, evitando, a inclusão de transeuntes un passant e de membros de uma mesma família ou grupo, para garantir a variedade de opiniões.

Realizamos uma análise interpretativa das respostas escritas pelo público do Salão de Humor, entendida como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações” (BARDIN, 1977, p.31), fundamental à compreensão dos significados consensuais sobre a Amazônia.

 

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

PADRÃO SOCIOECONÔMICO DOS ENTREVISTADOS

Obtivemos 60 questionários preenchidos (sendo 56,6% visitantes do sexo masculino), a partir dos quais elaboramos a Tabela 1.

 

Tabela 1. Faixa etária do público do 1º Salão de Humor da Amazônia

Idade

Quantidade

Total

13-17 anos

5

8,3%

18-29 anos

31

51,6%

30 anos ou mais

24

40,0%

Total

60

100%

 

O número de pessoas entre 13 a 17 anos correspondeu a 5 estudantes do Ensino Fundamental (4 incompleto e 1 completo). Dos 14 entrevistados que possuem Ensino Médio, 1 possui incompleto e 10 completo; dos 41 que possuem Ensino Superior, 23 possuem incompleto e 18 completo.

Além disso, dos 31 jovens (18 a 29 anos), 54,8% têm Ensino Superior incompleto, dos quais 70,5% se declararam estudantes universitários e 9,6%, Ensino Superior completo; os que possuem Ensino Médio (completo ou incompleto), nessa faixa etária, totalizam aproximadamente 35%.

Dos 24 adultos e idosos (30 anos ou mais), 62,5% têm Ensino Superior completo e 25% incompleto; já 12,5%, Ensino Médio completo. No total, 33,3% ganham de 3 a 5 salários mínimos e 29,1% de 6 a 8.

A renda familiar se concentrou entre 3 a 11 salários mínimos (mais de 70%), sendo que apenas 3 jovens (18 a 29 anos) têm renda familiar a partir de 12 salários mínimos.

A maioria dos entrevistados eram belenense (81,6%) e cidades do interior do Pará (10,0%), além disso, 4 pessoas eram de outras regiões e 1 estrangeiro. Consideramos, portanto, que o nosso público-alvo, em sua maioria, possui alto nível de escolaridade e bom nível salarial. Esses dados estão de acordo com os levantados por Barbalho; Freitas (2011) de que a maioria dos frequentadores da Estação das Docas, é de classe média e alta, concluindo que o local foi construído com o objetivo de (p.142): “inserir Belém no mercado simbólico nacional e internacional e na concorrência Intercidades”.

 

 

ANÁLISE DAS RESPOSTAS

Ao formularmos as perguntas subjetivas: 1) Qual a importância do 1º Salão de Humor da Amazônia? e 2) O que é a Amazônia para você?, pensávamos que as respostas seriam bem distintas entre si. Porém, a maioria apresentou discursos similares em ambas, focados em aspectos ecológicos; assim, optamos por uma avaliação global das respostas.

Vale ressaltar, no entanto, que na primeira questão: 56,6% das pessoas disseram que a importância do evento é divulgar a arte do cartum, incentivar os artistas, fomentar a cultura, promover o intercâmbio cultural entre os países e resgatar a História do Humor, no Pará. Ao mesmo tempo, 45% escreveram que o Salão é importante para conscientizar, mobilizar, alertar, estimular a reflexão, demonstrar a importância da Amazônia e denunciar os problemas ambientais. Levantamos a hipótese de que essas pessoas tenham se lembrado de mencionar a questão ecológica devido à leitura do texto de apresentação do Salão, de autoria do jornalista belenense Raymundo Mário Sobral, exposto no website do evento e em um painel na Estação das Docas, cujo conteúdo apresentamos a seguir: “o foco desses cartuns e charges é ecoar um manifesto. Reverberar a indignação. Deflagrar um berro ante a imbecilidade e a estupidez que se constituem o desmatamento e a devastação da Amazônia. Exército brancaleone do traço num embate feroz com a voracidade das motosserras desvairadas”.

Bueno (2002) entrevistou pessoas em São Paulo, Manaus, Belém e interior do Pará (Anequara) para saber que conceito elas tinham da Amazônia e conclui que essa palavra:

 

(...) tem um correspondente imediato na mente da maioria das pessoas. Quase todos os brasileiros ao menos já ouviram falar dela e, dentre esses, poucos não saberiam dizer que imagem lhes vem à cabeça quando o nome “Amazônia” é pronunciado. A imagem da floresta; da imensidão dos rios; são imagens geralmente desumanizadas (BUENO, 2002, p.6).

 

Utilizamos o modelo de tabela de Bueno (2002), com modificações, para categorizar os conceitos que o público apresentou nos questionários (Tabela 2).

 

Tabela 2. Principais ideias sobre a Amazônia que o público do 1º Salão de Humor da Amazônia apontou nos questionários.

 

Temas relacionado à ideia

Ideias associadas à Amazônia

Frequência

 

 

 

Meio ambiente

Floresta (ou mata, mato, selva)

10 (16,6%)

Água, rios

2 (3,3%)

Pulmão do mundo

7 (11,6%)

Natureza

8 (13,3%)

Animais

8 (13,3%)

Preservação ou destruição

36 (60%)

População

Vazio demográfico

0 (0%)

Índios

0 (0%)

 

Outros

Zona Franca

0 (0%)

Cidades ou Estados

2 (3,3%)

Minérios

1 (1,6%)

Turismo

2 (3,3%)

 

Embora 40% das pessoas não tenham citado explicitamente “preservação” e “destruição”, todas o fizeram implicitamente. É o caso, por exemplo, de uma estudante de Belém (18 a 29 anos, Ensino Médio incompleto), que escreveu: “É preciso que haja essa abordagem humorística que às vezes é a que penetra melhor nos desinteressados pela questão”, referindo-se aos cartuns, que em sua maioria denunciavam o desmatamento. Deste modo, supomos que ela acreditava na necessidade de conscientizar os “desinteressados” quanto à destruição da natureza, a qual deveria ser preservada.

Apenas 10% citaram “floresta (ou mata, mato, selva)”, porém, esse índice aumentou, quando consideramos que “meio ambiente”, “natureza” e “floresta” são termos muito confundidos pelos brasileiros (BRASIL, 2001). Dentro desse contexto, Reigota (2007) categoriza o termo meio ambiente em duas visões distintas: naturalista, visão do meio ambiente como sinônimo de natureza intocada, evidenciando somente os aspectos naturais e visão antropocêntrica, que evidência a utilidade dos recursos naturais para sobrevivência do ser humano.

Ninguém do público citou o vazio demográfico e os índios, no entanto, a primeira pergunta do questionário induziu a respostas que incluíram o tema “população”, na medida que a importância do Salão de Humor recai sobre o reconhecimento do trabalho de cartunistas paraenses. Todavia, na segunda pergunta, apenas treze pessoas se lembraram da parte humana da Amazônia. Em vez de escrever sobre a população amazônida, a maioria do público falou da população mundial, isto é, destacou que a Amazônia é essencial para o futuro da humanidade.

Daquelas treze pessoas, seis citaram a cultura amazônica, seis chamaram a Amazônia de “meu lar” e um mencionou a existência de seres humanos na região.

Apenas um pedagogo de São Paulo (30 anos ou mais, Ensino Superior completo) apontou aspectos sociais que vão além da cultura e da etnicidade: “Além do verde, a Amazônia é constituída de pessoas, histórias, culturas, realidades”, estando em consonância com Dutra (2005, p.169), o qual afirma que a Amazônia “não se constitui somente pelo ambiente físico como também pelo ambiente humano, com uma história social, política e econômica”. Os outros entrevistados citaram raças, credos, costumes e outros fatores muitas vezes dissociados do ambiente urbano onde residem. Portanto, concluimos que: 1) a maioria associou a Amazônia à natureza, mas esquece do ser humano que vive nela e 2) dentre os treze que se lembraram da parte humana da Amazônia, apenas sete associam a própria realidade à realidade da região.

O holandês que respondeu ao questionário (oficial de segurança da cidade de The Hague, Holanda, com idade entre 18 e 29 anos, Ensino Médio completo), não compreendia a língua portuguesa. A entrevistadora ao traduzir as perguntas para o inglês percebeu que o turista ficou surpreso, pois só então compreendeu que o evento era sobre a Amazônia. Segue o texto ditado em inglês (já traduzido): “É legal e importante para todos (...). Os cartuns mostram apenas árvores. Todo mundo já conhece essas mensagens ecológicas. Se alguém só olhar para os desenhos, não vai perceber que são sobre a Amazônia”, estando de acordo com Almeida et al. (2010) os quais verificaram que o desmatamento de modo geral, foi tema de 50% das obras apresentadas no evento.

De acordo com Aragón (2005), a Amazônia Legal ocupa aproximadamente 60% do Brasil- uma área que engloba nove estados brasileiros. A Floresta Amazônica faz parte da Amazônia Legal, e esta, por sua vez, da Pan-Amazônia, que inclui oito países da América Latina. Contudo, 68,3% do público do Salão confundiram a Amazônia com a Floresta Amazônica, isto é, escreveram como se toda a região fosse constituída apenas de florestas. Sabendo que 81,6% são de Belém e 10% do interior do Pará, inferimos que as pessoas excluíram a si próprias da região onde vivem, como se discorressem sobre um local do qual não fariam parte.

Bueno (2002) percebeu que a comunidade de Anequara, no interior do Pará, não tinha um sentimento de pertencimento em relação à Amazônia, pois não havia o distanciamento necessário para a construção de um conceito de “Amazônia” e que somente alguns grupos – particularmente uma elite intelectualizada – teriam as sensações de pertencimento e afeição concernentes à Amazônia.

Entretanto, a visão da Amazônia como patrimônio da humanidade não está ligada ao fato de o público ser burguês, mas sim ao de morar na cidade. O metropolitano não tem contato direto e diário com a natureza; mais especificamente, o belenense conhece a floresta através dos meios de comunicação e, alguns, das áreas naturais preservadas como: Museu Paraense Emilio Goeldi, Bosque Rodrigues Alves e Parque Ambiental de Belém. Em contrapartida, os povos tradicionais amazônicos (ribeirinhos, quilombolas, indígenas etc) defendem suas terras não como patrimônio da humanidade, mas sim como um espaço de onde tiram o próprio sustento, com afirmam Fonseca; Nakayama (2010).

Várias pessoas definiram a Amazônia como sua casa, seu lar, sua terra. Contraditoriamente, esses mesmos indivíduos confundiram o lugar onde vivem com a Floresta Amazônica: “Minha casa, minha terra, um dos mais ricos ecossistemas do planeta. Infelizmente, corre graves e sérios perigos, um pouco como nosso mundo, hoje” (professor de Altamira, 30 anos ou mais, Ensino Superior completo). Ele se inclui na Amazônia quando diz “minha casa, minha terra”, mas se exclui quando fala “um pouco como nosso mundo”, como se a Amazônia não fizesse parte do seu mundo, mas fosse apenas um pouco parecida com ele. A palavra “hoje” também é bastante significativa, e pode estar ligada às seguintes ideias: 1) o mundo é atual e a Amazônia, não; 2) os “graves e sérios perigos” são atuais, tanto no “nosso mundo” como na Amazônia.

O distanciamento que o enunciador sente com relação ao local onde mora pode ser observado nos questionários em que as pessoas se referiram à Amazônia como “lá”. Um músico de Belém (18 a 29 anos, Ensino Médio completo) escreveu: “eu acho que a cura da AIDS está lá e é um lugar que tinha um sonho de conhecer”. Neste exemplo, o músico fala como se não conhecesse a Amazônia, corroborando com Loureiro que justifica esse sentimento, como consequência de séculos de exploração e abusos, restando, hoje, uma estranha sensação de sermos estrangeiros e conclui que: “essa pesada história de esmagamento da identidade cultural dos habitantes da região que nos faz sentir, hoje, como estrangeiros vivendo em nossa própria terra (LOUREIRO, 2002, p.118).

A contradição entre o “lar” e o “lá” em numerosas respostas dificulta afirmar se os 23,3% das pessoas que chamaram a Amazônia de “nossa região”, “nossa querida Amazônia”, “nosso grande pulmão” etc, consideravam-na dos amazônidas ou de toda a humanidade; em outras palavras, afirmar que elas se consideram amazônidas seria uma inexatidão. É importante lembrar que o ser humano assume diferentes identidades, dependendo do contexto e da mensagem que deseja transmitir. “Toda identidade se constrói com base em um vazio do corpo. Fosse o corpo pleno, não precisaríamos desses suplementos identitários espirituais. Toda identidade é nesse sentido criação” (GONÇALVES, M.S., 2005, p.82).

Em diversos trechos, os entrevistados apresentaram o olhar do colonizador, isto é, o distanciamento que aflorava nos discursos dos europeus que aportavam no Brasil. A defesa da Amazônia se modificou ao longo do tempo, exigindo discursivamente a ocupação do território nos primeiros séculos de colonização, a luta contra a invasão estrangeira pelas fronteiras amazônicas durante a ditadura, o repúdio à internacionalização da Amazônia defendida pelos Estados Unidos da América, e a atual proteção da biodiversidade. Apesar das citadas modificações, a ideia de não ser originário do lugar onde se vive permanece.

Além da herança colonialista europeia, o olhar alóctone do brasileiro com relação à Amazônia tem herança midiática. Segundo Anderson (2004), a penetração da televisão na região amazônica, transcorrida no contexto de políticas de integração nacional, afetou a população local ao apresentar-lhes através de sua programação interesses sociais, padrões de comportamento, estilos de vida típicos da cultura do sudeste brasileiro.

Assim, os amazônidas passaram a assistir a programações das quais eram sistematicamente excluídos (LOUREIRO, 2001, p.83). A população urbana, por outro lado, já recebia sinais televisivos desde os anos 1960, e, desde então, costumam assistir a imagens da Amazônia não-urbana somente pela televisão, com discursos muitas vezes guiados pelas ideologias sulistas. Até hoje, a televisão exibe a Amazônia como “permanente redescoberta, espanto, distanciamento, encanto e estranhamento; uma região exótica, social e culturalmente não incorporada ao todo nacional”, conforme Dutra (2005, p.27).

Além da TV, outros meios de comunicação também apresentam, no geral, a Amazônia sob um olhar alóctone. Ao realizar uma análise de conteúdo dos jornais O Liberal, A Crítica e Folha de São Paulo, Santos (2002) observou que muitas matérias publicadas nos jornais da região foram compradas de agências de notícias do Sudeste, concluindo que há certa homogeneidade nos conteúdos sobre a Amazônia:

 

A análise dos estudos resultou igualmente na identificação de temas e tendências da cobertura noticiosa, como, por exemplo: o viés ambiental e econômico como lupas para observar a Amazônia; o uso da imagem aérea para possibilitar o domínio da área geográfica e do tema; a relação de floresta e vazio; o apelo à opinião de autoridades científicas e políticas externas a região para prover explicações; a Amazônia como assunto relacionado às questões de segurança nacional (SANTOS, 2002, p.61).

 

Nos questionários, vinte pessoas utilizaram expressões reveladoras do desejo de imutabilidade da Amazônia: patrimônio da humanidade, conservação, preservação, reserva natural, entre outras. Nas respostas, os conceitos de “conservação” e “preservação” são utilizados como sinônimos, porém, Valente (2005) define conservação como o conjunto de ações que são realizadas em um ecossistema, tendo em vista sua restauração, sua proteção e, sobretudo, a sustentabilidade da qualidade e quantidade de seus componentes e processos; já preservação, como um uso que deve ser dado a determinado ecossistema, no qual a interferência humana deve ser mínima, ou mesmo inexistente.

Algumas declarações deixam claros a mistura dos conceitos e o desejo de estagnação exploratória da Amazônia: “Um patrimônio nosso que deve ser sempre preservado” (estudante de Belém, 18 a 29 anos, Ensino Superior incompleto); “O ‘pulmão do mundo’ é de suma importância para todos os povos. (...) é preciso conservarmos este patrimônio da humanidade para que futuras gerações possam respirar melhor nesse mundo tão ‘sufocado’ pela poluição” (auxiliar de almoxarifado de Belém, 18 a 29 anos, Ensino Médio completo). A esse respeito, Benchimol alerta para:

 

(...) as influências, pressões e constrangimentos ecológicos e ambientais que, partindo de dentro ou fora do país, podem frear ou inviabilizar o desenvolvimento, transformando a Amazônia num santuário ecológico para desfrute da vida selvagem, para vender paisagem para o ecoturismo exótico e de aventura. (BENCHIMOL, 1999, p.450).

 

Segundo o discurso de preservação absoluta, a Amazônia deveria permanecer imutável para o usufruto das próximas gerações, do contrário desapareceria ou perderia seu valor. Partindo desse pressuposto, a região já não teria valor, pois vive em constante mudança. Mesmo o desenvolvimento sustentável, defendido por 10% dos visitantes, exige a modificação do espaço.

O desenvolvimento sustentável se tornou tema recorrente na mídia, nas escolas e universidades, nas discussões cotidianas etc. Sem a preocupação de defini-la concretamente, as pessoas se apropriam da expressão em seus discursos, como: “Principalmente uma região que deve ser preservada, permitindo o desenvolvimento sustentável” (exportador de Curitiba, 30 anos ou mais, Ensino Superior completo).

As opiniões do público nos questionários trazem implícito um conceito de desenvolvimento sustentável que “não relaciona os problemas ambientais com as relações sociais e não leva em conta as questões das desigualdades”, quando deveria considerar “as matizes teóricas e as variáveis políticas e ideológicas nelas envolvidas”, de acordo com Fernandes (2006, p.133). No discurso do desenvolvimento sustentável, a Floresta Amazônica precisa ser preservada a todo custo e de qualquer maneira, independentemente do contexto social em que ocorre o desmatamento. Sem sugerir medidas palpáveis e ignorando as diferenças regionais, os enunciadores simplificam o processo de sustentabilidade, quando na verdade sua aplicação é bastante complexa:

 

(...) tendo a problemática ecológica emergido inicialmente no contexto da sociedade do Primeiro Mundo, acabou por incorporar certas marcas características dessas sociedades. Destaquemos, por exemplo, o fato de a desigualdade social ter sido relativamente amenizada nessas sociedades em virtude de reivindicações de sindicatos e outras entidades da sociedade organizada terem sido incorporadas por meio de políticas públicas. Em virtude disso a problemática ecológica aparece dissociada da questão social (GONÇALVES, C.W.P., 2005, p.61).

 

Outras definições recorrentes de Amazônia, nos questionários, é “ar-condicionado do mundo” e “pulmão do mundo”. Ambas já foram desmistificadas por cientistas e pesquisadores, todavia a maioria da população continua desinformada a esse respeito. A mídia massiva, sua principal fonte de informações, continua utilizando essas teorias superadas pela ciência para espetacularizar a Amazônia, disseminando uma imagem grandiosa, porém, errônea. Segundo especialistas (RICKLEFS, 1996; LOVELOCK, 2006), a Floresta Amazônica está em equilíbrio e tem mantido basicamente o mesmo clima e a mesma quantidade de gases há milhões de anos, mas não é capaz de equilibrar o clima de todo o planeta. A floresta pode salvar a si própria, mas não garante o futuro da humanidade, o qual depende de ações econômicas e sociais.

A ideia de que a Amazônia é gigantesca, tão extensa que seria capaz de salvar o planeta inteiro, é frequente nas respostas aos questionários. Uma publicitária de Belém (18 a 29 anos) sentencia: “A Amazônia além de ser um enorme território rico em recursos naturais é, também para o mundo uma última esperança, uma reserva de culturas diversas, de fauna e flora ainda abundantes”. Neste trecho podemos perceber que a sociedade, influenciada pelas apreensões da pós-modernidade, muitas vezes deposita suas esperanças em um lugar que, supostamente, ainda teria sido pouco afetado pelos males dos novos tempos. Acreditamos que, no imaginário das pessoas, quanto maior o paraíso (Amazônia), maior a esperança de salvação – as duas grandezas são subconscientemente associadas.

 

A Amazônia é percebida por quem a contempla, como uma grandeza pura: é grande, é enorme, é terra-do-sem-fim. Sua concepção está associada geralmente a outros qualitativos: rica, incomparável, bela, misteriosa, inferno, paraíso. Algo que, embora próximo, está distante, como um outro mundo. (LOUREIRO, 2001, p.103).

 

Grande parte do público questionado defende veementemente a conservação urgente da floresta, criticando os destruidores – mas sem defini-los. Dez pessoas denunciam o descaso da sociedade, dizendo que os cidadãos não se mobilizam para melhorar a situação; nove veem um futuro catastrófico para a Amazônia e a humanidade como um todo, devido à destruição ambiental. No entanto, ninguém se declarou co-responsável pelos males ambientais; para a maioria do público, a destruição estaria acontecendo bem longe, na floresta, portanto, os moradores da cidade teriam pouco ou nenhum envolvimento na questão.

A Amazônia foi relacionada ao futuro por 26,6% do público, seja de forma esperançosa, seja catastrófica. Gonçalves, C.W.P. (2005, p.25) salienta que, na maioria dos discursos sobre a Amazônia, ela “nunca é o presente, mas sempre o futuro que será redimido pelos seus recursos imensos reais e imaginários. Assim a Amazônia nunca é; é sempre o vir-a-ser”.

Tal estigma mostra a Amazônia como um paraíso no passado, um inferno no presente e uma salvação ou destruição no futuro. Quanto ao passado idílico, um estudante de Belém (18 a 29 anos, Ensino Superior incompleto) escreveu que a Amazônia é “um pouco do que restou de toda a imensidão de ‘verde’ que existia há alguns séculos”.

Quanto ao presente e ao futuro, uma belenense que não declarou sua profissão escreveu (30 anos ou mais, Ensino Superior incompleto): “Amazônia é ainda um complexo de riqueza e pesquisa para muitas doenças que assola o século, é um berço de muitos ou seja milhares de espécies muitas vezes raras. Não sei se poderemos contar com a nossa Amazônia no futuro, pois isso acredito que só dependerá de nós”. Por mais que aponte as riquezas naturais no presente, ela aponta para a necessidade de contar com a Amazônia no futuro, para curar doenças.

É confortador perceber, antropocentrismos à parte, o reconhecimento de responsabilidades e dependências humanas ante o ambiente. No entanto, não podemos deixar de observar um intenso egocentrismo constituindo essas tomadas de posições, segundo as quais a natureza não precisaria ser preservada por ser importante em si, mas por ser útil, garantindo saúde e bem estar para os seres humanos (Santana, 2004).

Naturalmente, não pretendemos subestimar a importância da natureza na Amazônia. Queremos, na verdade, atentar para o ofuscamento da imagem do amazônida e a dicotomia infundada entre ambiente e sociedade. Segundo uma pesquisa nacional de opinião do IBOPE:

 

(...) permanece uma constatação incômoda, sobretudo para aqueles que trabalham com educação ambiental e para os movimentos sociais que atuam mostrando a ligação estreita entre a sociedade e a natureza, entre os problemas ambientais e as ações humanas: a pesquisa mostra que para os brasileiros, como já indicavam os estudos de 1992 e 1997, meio ambiente é sinônimo de fauna e flora. Convidados a reagir indicando em um cartão com 14 elementos, aqueles que fazem parte do meio ambiente, mais da metade deixou de incluir os seres humanos (...) e as favelas, bem como as cidades (BRASIL, 2001, p.15).

 

A cultura amazônica foi citada por 23,3% das pessoas. Para uma delas, a Amazônia é “a aglutinação de várias etnias, opiniões, cores, raças, credos etc. É uma grande metáfora dos tempos pós-modernos: um caos organizado na desorganização característica de um povo em constante e evidente transformação. É um misto de desenvolvimento, queimada, ideias, sátiras, alegria e desespero” (poeta, escritor, professor e funcionário público de Belém, 18 a 29 anos, Ensino Superior incompleto). Destacamos aí o reconhecimento da diversidade cultural da região, superando a ideia de uma cultura homogênea, parada no tempo e no espaço.

Alguns que citaram a cultura amazônica a relacionaram com a arte dos cartuns, celebrando o reconhecimento do gênero na região, que, segundo eles, costuma ser pouco valorizado. Enquanto alguns associaram a cultura regional ao desenvolvimento das artes visuais, outros a associaram às culturas tradicionais. Acreditamos que a valorização da(s) cultura(s) amazônica(s) seja bastante positiva e, embora venha acompanhada de um discurso pela estagnação dos produtos culturais (modo de vida dos povos tradicionais, folclore, danças típicas, entre outros), demonstra respeito pelo lado humano da Amazônia, e não somente o aspecto natural.

 

 

Conclusão

 

Os discursos do público do I Salão de Humor da Amazônia mesclam olhares autóctones e alóctones. Ao mesmo tempo em que pessoas definiram a região como “sua casa”, caracterizando o ponto-de-vista do nativo, outras se referiram a ela como “lá”, indicando um olhar marcado pelo distanciamento e pelo estranhamento.

Ao analisar os discursos nos questionários, concluimos que a maioria das pessoas possui imagens desumanizadas da Amazônia, relacionando-a com frequência bem maior a árvores e rios, do que aos seus habitantes. Além disso, os dados demonstram que essa visão é generalizada, tanto entre nativos como entre não-amazônidas.

Contudo, os resultados deste trabalho surpreenderam na medida em que o percentual de pessoas que citaram a cultura amazônica foi superior ao esperado. Elas apontaram não somente a cultura tradicional, que para alguns deveria ser “salva” e “preservada”, mas também a arte dos cartuns, que é substancialmente contemporânea. Este dado nos deixa otimistas a respeito da imagem futura da Amazônia, que esperamos ter seu aspecto humano cada vez mais valorizado.

No caso estudado, o público era eminentemente paraense, de classe média e com Ensino Superior. Em geral, esta parcela da população tem acesso à informação nas universidades e na internet, ao contrário da maioria dos brasileiros. Todavia, essa facilidade de acesso ao conhecimento não garante uma compreensão mais complexa a respeito de seu próprio ambiente, haja vista que os discursos presentes nas respostas aos questionários são, em sua maioria, carregados de estereótipos difundidos pela mídia massiva.

Acreditamos ser possível que o público tenha demonstrado um olhar alóctone e desumanizado a respeito da Amazônia, não apenas devido às suas visões-de-mundo, mas também porque estavam sob a influência da visualização recente dos cartuns do 1º Salão de Humor da Amazônia, pois o evento apresentou obras com temas predominantemente voltadas para a natureza, defendendo a causa ambientalista e ignorando que a figura humana faz parte do meio ambiente.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ilustrações: Silvana Santos