Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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04/06/2014 (Nº 48) PERCEPÇÃO AMBIENTAL E A PROBLEMÁTICA SÓCIO AMBIENTAL DA LOCALIDADE RURAL DE CERRO PELADO/URUGUAI
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Dinâmica socioambiental: estudo de caso de uma localidade rural do pampa

 

PERCEPÇÃO AMBIENTAL E A PROBLEMÁTICA SÓCIO AMBIENTAL DA LOCALIDADE RURAL DE CERRO PELADO/URUGUAI

 

Letícia Fátima de Azevedo

Zootecnista, Doutoranda em Extensão Rural (PPGExR – UFSM); Docente do Instituto de Desenvolvimento Educacional do Alto Uruguai (IDEAU). Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural. Faixa de Camobi, Km 09 – Campus, Prédio 44, Sala 5106, CEP: 97105-900 - Santa Maria/RS. Tel: (55)3220.8165. Email: letiazevedo@hotmail.com

 

Tatiane Almeida Netto

Engenheira Florestal, Doutoranda em Geografia (PPGGEO – UFSM). Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural. Faixa de Camobi, Km 09 – Campus, Prédio 44, Sala 5106, CEP: 97105-900 - Santa Maria/RS. Tel: (55)3220.8165.Email: tatinetto@yahoo.com.br

 

Clayton Hillig

Médico Veterinário, Doutor em Sociologia (UFRGS). Professor do Programa de Pós-graduação em Extensão Rural (PPGExR – UFSM). Endereço: Rua Otávio Binato, nº34, ap101 – Santa Maria/RS – Cep: 97010-360. Tel: (55) 9151-1025. Email: hillig@smail.ufsm.br

 

 

Resumo: O objetivo do presente estudo é compreender a relação entre a percepção ambiental e a problemática sócio ambiental da comunidade rural de Cerro Pelado/Uruguai. Utilizou-se para análise as observações e diálogos, captando a subjetividade dos sujeitos, com a intenção de fazer a descrição do mundo vivido das experiências. A comunidade de Cerro Pelado mostra-se integrada ao Pampa, valoriza sua paisagem campestre, entretanto, aponta como problema socioambiental a questão dos resíduos, pelo fato de não haver o recolhimento do mesmo. A organização social e política na comunidade permite que se crie uma consciência na exploração dos recursos disponíveis. Analisando as percepções ambientais da comunidade constata-se que não existem diferenças nas percepções dos valores e da importância dos mesmos entre os indivíduos, devido à construção social que a mesma propõe nas tomadas de decisões exercidas de forma democrática.

Palavras- chave: ambiente, pampa, percepções ambientais.

 

 

Introdução

 

O Uruguai, por não apresentar grande desenvolvimento industrial e superpopulação, entre outros motivos não apresentava, até cerca de 10 anos, preocupação com a questão ambiental em suas políticas públicas. No entanto, Schmidt e Zanotelli (2004, p. 17) afirmam que no país aumentou a preocupação com esta temática, devido ao aumento na ocorrência de erosão dos solos e contaminação das águas, provocando com isso uma evolução significativa da legislação ambiental.

É nesse contexto que se insere o relato do presente estudo, realizado na localidade rural de Cerro Pelado, pertencente ao Departamento de Rivera-Uruguai onde, segundo depoimentos dos moradores da referida localidade, a legislação ambiental na República do Uruguai não é rigorosa, sendo muito mais uma norma preventiva do que punitiva.

O ecossistema em que a localidade de Cerro Pelado está inserida, “Pampa”, abrange regiões pastoris de planícies em três países da América do Sul – cerca de dois terços do estado brasileiro Rio Grande do Sul, as províncias argentinas de Buenos Aires, La Pampa, Santa Fé, Entrerríos e Corrientes e a República Oriental do Uruguai. Está localizada entre 34º e 30º latitude sul e 57° e 63° latitude oeste (SUERTEGARAY e SILVA, 2009, p. 45).

O Uruguai é considerado um país com baixa cobertura florestal, em função da superfície territorial que ocupam as florestas, o que se destaca no país são as florestas plantadas com destino industrial que ocupam 750.000 ha, 4% da superfície total do país, contando com 220.000 ha de florestas plantadas para abrigo, proteção e uso recreativo (Dirección General Florestal- Ministério de Ganadería, Agricultura e Pesca/GDF-MGAP, 1994).

O Pampa pode ser contextualizado pela sua evolução desde os povos pré-colombianos que ao habitarem a região vivenciaram os areais e a interação do Pampa com os colonizadores que originaram uma “cultura gaúcha” através da introdução do gado trazido pelos europeus. O gado integrou-se à paisagem pampiana e mantém a imagem natural realimentando a tradição.

A paisagem pampiana está vivenciando uma crise na tradicional economia baseada na criação de gado, a diversidade, paisagens e saberes do Pampa estão ameaçados pela introdução de novas alternativas que descaracterizam a evolução social e biológica do bioma Pampa (SUERTEGARAY e SILVA, 2009).

A introdução de agricultura mecanizada de monocultivos e de culturas exóticas (Pinus e Eucalipto) agravaram os riscos de contaminação ambiental por agroquímicos e a perda de biodiversidade. Observa-se o risco da contaminação ambiental na cultura do arroz irrigado, conforme dados do IRGA (Instituto Riograndense do Arroz) em 2008 o Uruguai possuía uma área plantada de 182 mil hectares de arroz, nos quais há o uso expressivo de inseticidas, herbicidas e adubos químicos, e a consequente deriva dos mesmos para arroios e rios além da captação de água para os sistemas de irrigação comprometendo os fluxos naturais. (GERHARDT e ZARTH, 2009, p. 280).

Assim como ocorreu em outros países do Mercosul, o Uruguai vem passando por uma mudança em sua base agropecuária, vivenciando uma célere expansão da agricultura de commodities, principalmente soja e trigo, com um aumento de 332% na produção deste e passando de um cultivo quase inexistente daquele em 2003, para ser o principal cultivo já em 2008 (GUTIERREZ, 2009). A área plantada do país quadruplicou em dez anos (SALDÍAS, 2010), esse crescimento é devido principalmente pela conjunção de fatores como a crise dos anos 2000/2001 no setor do país, a grande dívida adquirida e consequente baixo preço das terras, atraindo investidores/empresas agrícolas, primeiramente da Argentina e depois multinacionais, ao Uruguai (GUTIERREZ, 2009), o crescimento do cultivo de transgênicos, plantio direto, entre outros (ARBELETCHE e CARBALLO, 2008).

Diante dessas considerações o objetivo deste estudo é compreender a relação entre a percepção ambiental e a problemática sócio ambiental da localidade rural de Cerro Pelado – Rivera/Uruguai.

 

 

 

Percepção ambiental e o ecossistema Pampa

 

O estudo da percepção ambiental é de fundamental importância para compreender melhor a inter-relação entre o homem e o ambiente, suas expectativas, anseios, satisfações, julgamentos e condutas (ZAMPIERON, 2003). A relevância da pesquisa em percepção ambiental para planejamento do ambiente foi destacada na proposta da UNESCO (1973):

 

Uma das dificuldades para a proteção dos ecossistemas naturais está na existência de diferenças nas percepções dos valores e da importância dos mesmos entre os indivíduos de culturas diferentes, ou de grupos socioeconômicos, que desempenham funções distintas, no plano social, nesses ambientes.

 

Maroti (2000) aponta que a investigação da percepção ambiental dos grupos socioculturais deve fazer parte de projetos de pesquisa que tratam do gerenciamento de ecossistemas e da relação homem-ambiente. Quando o ser humano pensa sobre essa relação, procura esclarecer suas percepções e se questiona sobre seu lugar em tal ambiente, tornando possível a avaliação de suas ações no ambiente (MARIN et al., 2003). Desta forma, pesquisas voltadas a percepção da relação homem-ambiente podem ser formas “alternativas” de educação e transformadoras de atitudes.

Diante disso, a percepção é a experiência sensorial direta do ambiente no qual se dá em um dado instante e através de mecanismos perceptivos e não um processo passivo de recepção informativa, já que implica em certa estrutura e interpretação da estimulação ambiental antrópica (BASSANI, 2001). Sendo assim, a percepção é a maneira que o ser humano observa/compreende o meio ambiente, o meio em que vive e como relaciona seus conhecimentos, experiências e ações com as leis que estão impostas.

Os objetivos relacionados à percepção das pessoas em matéria ambiental se baseiam em aumentar a compreensão das diferentes percepções, ajudar na preservação das mesmas e dos sistemas de conhecimento do meio ambiente, proporcionar maior encorajamento da localidade em assuntos voltados ao desenvolvimento e planejamento regional e cooperar para um aproveitamento mais racional dos recursos naturais (WHYTE, 1977).

No entanto, para que mudanças de paradigmas se reflitam no comportamento da sociedade, é preciso que se provoque, mais que conscientizações: um resgate dos laços que unem o ser humano à natureza. Esse laço é construído não só dos conceitos que o ser humano tem sobre o meio ambiente, mas de outros inúmeros aspectos inerentes à sua natureza. O entendimento dessa interação do ser humano com o ambiente, solidificada em bases tão complexas, tem representado um estímulo para pesquisas de percepção ambiental. Essa percepção tem sido estudada, na maioria dos casos, mediante o levantamento de conceitos de meio ambiente e dos referentes a fenômenos e problemas ambientais (MARIN et al., 2003).

Cada sociedade arquiteta o espaço ambiental conforme suas necessidades ou aquelas necessidades que se apresentam em maior grau (TRINDADE e CORDEIRO, 1997). Cada indivíduo entende, percebe e retribui de formas diferentes às ações sobre o meio em que vive. As respostas ou manifestações são frutos das percepções, dos processos cognitivos, julgamentos e expectativas de cada indivíduo (MELAZO, 2005).

Para Behling et al. (2009) os ecossistemas campestres são fortemente influenciados pelas atividades humanas, onde a remoção da vegetação e a alteração da paisagem, por meio da agricultura, pastoreio e a introdução de sistemas silvipastoris com plantio de espécies exóticas ao bioma como Eucalyptus e Pinus, têm mudado claramente a vegetação original do Pampa.

A vegetação campestre apresenta uma alta diversidade de espécies e de ecossistemas e está amplamente adaptada aos diferentes locais do ambiente (BOLDRINI, 2009). As plantas apresentam na sua fisiologia e morfologia características peculiares capazes de suportar os estresses do ambiente, ou seja, é um sistema altamente resiliente. É certo que a substituição da vegetação original por outra atividade irá implicar em alterações.

A substituição dos campos por lavouras para produção de grãos ou plantios para obtenção de celulose está conduzindo à descaracterização da paisagem e a perda da cultura gaúcha e consequentemente a lendária figura do gaúcho, desta grande unidade de paisagem natural “o Pampa” (BOLDRINI, 2009).

O Pampa está sendo modificado e alterado com a introdução de homogeneização de cultura, quer seja silvicultura ou grãos. Rocha (2000) observa que ecossistemas ricos em biodiversidade são transformados em sistemas vulneráveis, como aconteceu, por exemplo, na implantação das grandes plantations na chamada Revolução Verde entre as décadas 60 e 70 do século XX. A realidade do nordeste do Rio Grande do Sul comprova isso: a introdução de monocultura, especificamente a soja, provoca nos dias de hoje problemas ambientais como o esgotamento dos solos, além de desajustes sociais e econômicos por não possuírem mais alternativas.

A caracterização da paisagem do Pampa pode ser compreendida em sua história ambiental pela sua historicidade registrada nos trabalhos de Saint-Hilaire (1974 apud SCHWANZ, 2010)

 

Até agora tenho atravessado sempre planícies uniformes sem o mais leve acidente e unicamente animadas pela presença do gado aí apascentando. [...] Distinguem-se estâncias e chácaras. Uma estância é uma propriedade onde pode existir alguma cultura, porém ocupando-se principalmente da criação de gado. A chácara tem área menor e só se destina à agricultura (SAINT-HILAIRE, 1974, 91-139 apud SCHWANZ, 2010).

 

Além disso, a paisagem também pode ser compreendida a partir de uma abordagem cultural onde se constitui na relação com o homem, constata-se que o gaúcho nasceu identificado a uma dada paisagem e uma dada atividade que consolidaram a identidade do gaúcho como o habitante da região dos Pampas.

Se analisarmos a história ambiental do Pampa pela perspectiva socioambiental, o gaúcho está relacionado com o ambiente campestre, sua história representa a biodiversidade, a introdução e solidificação da pecuária no Pampa, pecuária tradicional e extensiva e a pequena agropecuária. Gerhardt e Zarth (2009) apontam no seu estudo sobre a história ambiental do Pampa o recente reconhecimento de que este bioma é uma forma específica e única de organização da vida no planeta sendo esse um motivo para utilizar seus bens naturais de forma ambientalmente responsável e socialmente justa.

 

 

Metodologia

 

A pesquisa realizada foi exploratória descritiva, onde se utilizou de estudo de caso por ser uma análise profunda, permitindo detalhado conhecimento para descrever a percepção ambiental do Pampa por parte dos moradores de Cerro Pelado. Utilizou-se métodos de observação direta, diário de campo, revisão bibliográfica, entrevistas semi-estruturadas com agricultores familiares e lideranças comunitárias.

A técnica da observação direta foi utilizada para coleta de dados e captar detalhes surgidos inesperadamente, em conversas informais, o pesquisador pode obter subsídios importantes para promover a sua discussão em torno das ideias. As entrevistas semi-estruturadas permitem, no momento da entrevista, combinar perguntas abertas e fechadas, onde o informante teve a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto.

A amostragem utilizada foi intencional, baseando-se em critérios empíricos que investigam um fenômeno contemporâneo e suas particularidades e não a uniformidade (YIN, 2001). Segundo Bell (2008), o estudo de caso deve proporcionar detalhes a um levantamento que proporcionam a identificação de questões chaves.

Considera-se uma pesquisa qualitativa, em decorrência da análise de dados, onde segundo Creswell (2010) é considerada um meio para explorar o significado que os indivíduos atribuem a um problema social, onde a pesquisa envolve a coleta de dados no ambiente estudado, com análise de dados de forma indutiva a partir das particularidades sempre com foco no significado individual e na importância da complexidade.

 

Resultados e discussão

 

No Uruguai, o gaúcho possui uma cultura rica, adaptada a partir da integração entre o homem e a natureza, interação esta que pode ser constatada nas letras das canções nativas, no artesanato com lãs, na gastronomia e festas típicas. Por outro lado, a criação extensiva de gado em campos naturais, praticada em todo o Pampa, é a imagem da cultura gaúcha, a identidade do povo que se identifica como gaúcho e que pode garantir a preservação do mesmo.

Ao longo do século XIX o Pampa assim como o Uruguai sofreu alteração na sua paisagem com a implantação de novas culturas, tais como arroz, trigo e soja e monoculturas de espécies silviculturais como Pinus e Eucalipto. Com a intensificação da Revolução Verde foi inseridos novas práticas agrícolas, prevendo a especialização agravando os problemas socioambientais, onde as áreas de campo nativo foram aradas e o solo alterado em sua composição química para se adequar as novas culturas exóticas agravando os riscos de contaminação ambiental por agroquímicos e a perda de biodiversidade.

Recentemente o governo do Uruguai está preocupado com os conflitos de terra, para que não se concentre a terra nas mãos de estrangeiros, o que resultaria em menores opções para as famílias que residem no meio rural (AGAZZI, 2007 apud CARRIQUIRY, 2009). Entrevistados relataram que muitos vizinhos venderam suas terras às empresas papeleiras e migraram para o meio urbano, e agora se arrependem de ter saído do campo, pois não conseguiram inserir-se no cotidiano da cidade. Por outro lado, os mesmos moradores afirmam que a cadeia florestal trouxe benefícios ao país, se destaca a presença de moradores de Cerro Pelado integrados a cadeia florestal.

O Ministério de Ganadería, Agricultura e Pesca (MGAP) fomenta o diálogo entre produtores tradicionais e empresas multinacionais para que o desenvolvimento florestal seja mais controlado e permita uma convivência integrada com a pecuária. Também a utilização de sistemas agropecuários onde o uso de consórcio entre a pecuária e lavoura poderia trazer benefícios para o Pampa através de um sistema intensivo de rotação de culturas, aproveitando o adubo orgânico fornecido pela pecuária, entretanto o uso do consórcio não se instalou por persistência da tradição cultural (GERHARDT e ZARTH, 2009, p. 276).

A produção econômica de Cerro Pelado está concentrada basicamente na bovinocultura/ovinocultura extensiva, compreendendo pequenas áreas de produção de grãos. Verifica-se a introdução da silvicultura apenas no entorno, os campos ainda caracterizam a paisagem natural do Pampa, embora se verifique a presença de espécies invasoras como o exótico capim-annoni, preocupação apontada pelos moradores de Cerro Pelado.

Arbeleche e Carballo (2008) acreditam que a expansão agrícola continuará nos próximos anos. Entretanto, mesmo não sendo observadas plantações de soja ou outra commodity no presente estudo, há o risco de que pressões por produtividade cheguem a essa localidade, descaracterizando-a. A localidade de Cerro Pelado mostra-se integrada ao Pampa, valoriza sua paisagem campestre - referencia a cultura crioula, prova disso é a festa Campeira a maior festividade de Cerro Pelado recebendo em torno de mil visitantes. Também podemos referir essa integração ao Pampa devido a sua produção e sua identidade, formada por agricultores familiares e em grande parte pecuaristas familiares e a caracterização da pluriatividade no campo.

Deve-se atentar para a introdução da silvicultura no Departamento de Rivera. A introdução dos monocultivos florestais nos campos sulinos agravou os problemas socioambientais, podendo ocasionar uma descaracterização e uma dissociação do indivíduo com seu ambiente no local, os saberes, fazeres, enfim, a cultura. É necessário cautela e planejamento, sendo ela adotada e associada a práticas pecuárias, sistemas agrosilvipastoris. Assim o seu uso estará então contribuindo para o fortalecimento do Pampa, utilizando-se da cultura através do uso mais sábio dos recursos naturais podendo promover um desenvolvimento regional.

Em suas intervenções os entrevistados afirmam que não há um órgão específico para fiscalização do cumprimento de leis ambientais, e sim que somente ela se dá através de denúncias, geralmente, sobre queimadas em florestamentos, quando esta ultrapassa os limites da propriedade. Para essas plantações, inclusive, concordam que há uma legislação específica e rigorosa.

Os entrevistados, majoritariamente, acreditam que a fiscalização, se situa sobre a temática da água e relatam que há uma política de preservação de mananciais, através de crédito para construção de açudes e subsídio de 80% do custo dos mesmos. Eles ponderam que riachos não possuem, em sua maioria, mata ciliar, mas os rios mais amplos sim. “Sabemos de uma legislação antiga sobre a matéria ambiental, mas só agora essas leis estão sendo aplicadas com mais rigor” (Entrevistado C).

Conforme pesquisa documental e bibliográfica, o meio ambiente encontra-se protegido na Constituição da República Oriental do Uruguai, assim como no Brasil e outros países membros do Mercosul (MULLER, 2006, p.127) e, segundo o mesmo autor (Ibid., p.129), a carta magna uruguaia trata o meio ambiente de forma genérica. O artigo 47, na seção II dos Direitos, Deveres e Garantias, nos diz que

 

A proteção do meio ambiente é de interesse geral. As pessoas deverão abster-se de qualquer ato que cause depredação, destruição ou contaminação graves ao meio ambiente. A lei regulamentará esta disposição e poderá prever sanções para os transgressores. A água é um recurso natural essencial para a vida. O acesso à água potável e o acesso ao saneamento constituem direitos humanos fundamentais (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI).

 

A República do Uruguai, sobre a premissa da sustentabilidade, implementa a promoção de projetos ambientais vinculados ao Ministério de Ganadería, Agricultura e Pesca (MGAP). A localidade de Cerro Pelado participa do projeto de Produção Responsável, inserido no Manejo Integrado dos Recursos Naturais e da Biodiversidade (MVOTMA, 2010, p. 29). Este projeto tem apoio do Banco Mundial, Fundo para o Meio Ambiente Mundial e a FAO, e tem por objetivo “promover a adoção de sistemas de manejo integrado e eficiente dos recursos naturais de uso agropecuário, incluindo a diversidade biológica, que sejam econômica e ambientalmente viáveis” (MGAP, 2010, p.11).

Esse objetivo é buscado através de estímulos aos pequenos e médios agricultores e pecuaristas, principalmente, para que estes utilizem sistemas de produção sustentáveis, e incorporem melhorias tecnológicas no manejo dos solos, água e diversidade biológica (Ibid., p. 10). O projeto conta com colaborações de diversas instituições do Estado, além do MGAP - responsável global pela sua execução -, o DINAMA, o Instituto Nacional de Investigación Agropecuaria (INIA), Universidad de la República (UDELAR) e outros (Ibid., p. 12).

O projeto de Produção Responsável faz parte do Plano de Ação Nacional em Produção e Consumo Sustentável, desenvolvido por um convênio de cooperação técnica entre MVOTMA e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) (MVOTMA, 2010, p. 09). O plano embasa-se na Lei 17.283/00, já mencionada aqui, que estabelece como dever fundamental do Estado e das entidades públicas em geral, proporcionar um modelo de desenvolvimento ambientalmente sustentável (Ibid., p. 23) e possui como objetivo geral identificar, coordenar, integrar e fortalecer ações, programas e projetos que previnam e minimizam impactos ambientais derivados da produção e do consumo (Ibid., p.18).

A República do Uruguai possui uma legislação que acompanha as necessidades ambientais do país e elabora políticas que visam o consumo e a produção sustentável, como mostra os resultados do Estudo Evaluación de la Sustentabilidad de las Actividades Agropecuárias em Unidades Familiares – EIAR (Ibid., p. 41). Em seus resultados globais, observa-se que grande parte dos sistemas avalidados está em conformidade com seu limiar de sustentabilidade, necessitando os que não estão de ações conjuntas sem grandes investimentos.

Rocha, Canto e Pereira (2005) vão além e afirmam que os países do Mercosul possuem mecanismos suficientes em sua legislação para a conservação ambiental. De maneira geral, percebe-se que os moradores de Cerro Pelado conhecem a legislação uruguaia, o que lhes é exigido no seu cotidiano, e participam de projetos governamentais cujos objetivos são a sustentabilidade. Os entrevistados afirmaram preocuparem-se com alguns problemas ambientais, mesmo sem haver fiscalização por parte do Estado. Uma das entrevistadas coloca que “por consciência nós protegemos a mata ciliar, mas não há legislação aqui (esposa do entrevistado B)”.

Verificou-se que a forma organizacional da localidade é realizada através de comissões específicas, que são montadas para discussão das temáticas socioambientais tais como: educação, água, estradas, moradias e segurança. Essa forma de autogestão promove a participação, discussão e requisição às autoridades facilitando o acesso ao microcrédito e consequentemente o desenvolvimento. Muitas vantagens são obtidas através da organização dessas comissões.

Um ponto “negativo” socioambiental que foi citado pelos moradores é a questão do lixo, onde este é alocado em um aterro sanitário e encontra-se muito próximo às casas e ao lado do campo de futebol, onde a escola realiza as aulas de educação física Para uma das moradoras (esposa do Entrevistado B) “essa é a sua preocupação ambiental”, outros relataram que procuram separar o lixo e inclusive, em uma das comissões, denominada de “vecinal”, a coleta do lixo reciclável foi até proposta, mas não obteve resultados.

O desenvolvimento econômico da localidade de Cerro Pelado está baseado na bovinocultura/ovinocultura de corte extensivamente, valorizando a cultura e tradição pampeana. No entanto, percebe-se a adoção de culturas de grãos com baixa representatividade.

Na fala de um entrevistado se verifica uma afeição pelo Pampa e a tradição familiar, “nasci aqui, me criei na campanha, sempre trabalhei com gado, meu pai já trabalhava (...). Além do gado tenho 500 colmeias, hoje vivemos das abelhas, tenho tudo, antes não tinha nada, só uma bicicleta. Tenho gado pro consumo e pelo gosto, pela tradição. Faz seis anos que trabalho com mel, faço três colheitas por ano, à primeira é na mata nativa depois eucalipto e pastagem (Entrevistado C).”

Em decorrência da estiagem em 2009 o Uruguai declarou Estado de Emergência Nacional Agropecuária, foi um período trágico com relação à seca que assolou o País, a qual foi acompanhada de pragas de gafanhotos, aranhas, morte de animais nos campos, falta de água, incêndios descontrolados e quebra de safras. A localidade de Cerro Pelado foi bastante afetada pela estiagem e a conseqüente falta de água, o entrevistado C aponta que “de fome a gente não morre, mas de sede é perigoso”. Esse é um problema que afeta as necessidades básicas humanas como também o cultivo e manutenção agrícola e pecuária. Porém, através das comissões locais os moradores conseguiram que a OSE - Obras Sanitárias del Estado -, construísse um poço com auxílio de energia devido à presença de bombas de recalque para o abastecimento, resolvendo um problema socioambiental antigo.

Também foi através dos depoimentos dos moradores, que se pode perceber a preocupação com a invasão da gramínea capim-annoni, (Eragrostis plana) onde, conforme relatado, foi abordado o tema nas comissões locais. A localidade está de posse de dessecantes (herbicidas) para o controle da planta indesejável, e aguardam instruções do Departamento de Rivera para uso controlado do glifosato (herbicida sistêmico não seletivo, ou seja, mata qualquer tipo de planta). Testa (1996) afirma que existem inúmeros problemas ocasionados pelo uso de agrotóxico, entre estes destaca a presença de resíduos nos alimentos e a intoxicação direta da população humana e de animais. Também, o citado autor, destaca a contaminação dos mananciais hídricos, seja pela lavagem dos pulverizadores, contaminando as águas superficiais e subterrâneas ou pela poluição da mesma através do escoamento pela superfície e de percolação do lenço freático, é uma consequência perversa deste fenômeno.

 

Considerações finais

 

A localidade de Cerro Pelado mostra-se integrada ao Pampa, valoriza sua paisagem campestre,referencia a cultura crioula, prova disso é a festa Campeira a maior festividade de Cerro Pelado recebendo em torno de mil visitantes. Também podemos referir essa integração ao Pampa devido a sua produção e sua identidade, formada por agricultores familiares e em grande parte pecuaristas familiares e a caracterização da pluriatividade no campo.

Os entrevistados apontam como problema socioambiental, a questão dos resíduos, por não haver o recolhimento do mesmo por parte do Departamento de Rivera. Os resíduos encontram-se em um lixão (aterro sanitário), na parte central da localidade, próximo às escolas, ao salão comunitário, e às cem vivendas comunitárias, onde os moradores procuram da melhor maneira separar os resíduos (plásticos, orgânicos, papéis, metais). Nas propriedades rurais, o destino destes é a queima, o que gera preocupação com as embalagens plásticas.

Deve-se atentar para a introdução da silvicultura no Departamento de Rivera. A introdução dos monocultivos florestais agravou os problemas socioambientais, podendo ocasionar uma descaracterização e uma dissociação do indivíduo com seu ambiente no local, os saberes, fazeres, enfim, a cultura. Não se trata de afirmar que a silvicultura é uma cultura ilegítima e proibida para os habitantes dos campos, mas é necessário cautela e planejamento em sua adoção.

Apesar da tendência à expansão agrícola, não foi observada plantações de soja ou outra commodity no presente estudo, o que se verifica principalmente é a prática da bovinocultura de corte extensiva. Se a localidade de Cerro Pelado continuar a desenvolver-se socialmente, discutindo, analisando suas ações conjuntamente, buscando o uso dos recursos naturais de forma responsável certamente contribuirá para a preservação e conservação do Pampa.

Analisando as percepções ambientais de Cerro Pelado constata-se que não existem diferenças nas percepções dos valores e da importância dos mesmos entre os indivíduos da localidade, devido à construção social que a mesma propõe nas tomadas de decisões exercidas de forma democrática.

 

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Ilustrações: Silvana Santos