Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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16/12/2013 (Nº 46) UM RESGATE DA SACRALIDADE NA RELAÇÃO SOCIEDADE X NATUREZA: CONTRIBUIÇÕES DA CULTURA GUARANI MBYÁ
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O AMBIENTE NATURAL E O SAGRADO:

 

UM RESGATE DA SACRALIDADE NA RELAÇÃO SOCIEDADE X NATUREZA: CONTRIBUIÇÕES DA CULTURA GUARANI MBYÁ

 

Geraldo Milioli, Dr. Sociólogo, professor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Coordenador do Laboratório de Sociedade, Desenvolvimento e Meio Ambiente (LABSDMA).

geramil@unesc.net

Av. Universitária, 1105 – Bairro Universitário.

C.P. 3167/ CEP: 88806-000

Criciúma, Santa Catarina.

 

Gláucia Cardoso de Souza, Engenheira Ambiental, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).

gaudesouza@yahoo.com.br

 

João Batanolli, Historiador, Professor pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) da instituição.

jrb@unesc.net

 

 

RESUMO

 

O presente artigo problematiza a importância da contribuição das experiências vivenciadas pelas comunidades indígenas, tendo em vista suas formas originais de produção e organização social, bem como, a concepção da natureza como algo sagrado. Traçou-se um panorama histórico da evolução da relação sociedade x natureza, adentrando enfaticamente na concepção indígena sobre o ambiente natural. Com o propósito de coletar dados e informações in loco, houve a oportunidade de visitar três aldeamentos da cultura Guarani Mbyá, dois deles em Santa Catarina e um no Paraná. Além de entrevistas informais com os representantes do aldeamento, muniu-se de observações in loco e registro em diário de campo. Verificou-se que a transmissão do conhecimento e de suas particularidades se dá através do representante mais experiente da aldeia, considerando que o ensinamento indígena Guarani se fundamenta essencialmente na importância da preservação do meio natural.

 

Palavras-chave: Ambiente Natural; Sacralidade; Guarani.

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Diante da complexidade dos problemas socioambientais e da necessidade de caminhos alternativos que viabilizem uma nova racionalidade social, pondera-se sobre a existência de experiências que resgatam valores, saberes e técnicas cultivadas transgeracionalmente.

Nesse contexto, o presente artigo tem por finalidade reafirmar a importância da contribuição das experiências vivenciadas pelas comunidades tradicionais, especialmente, pelas comunidades indígenas, nesse processo de reorientação de valores e construção de uma nova ordem social.

Os indígenas, especialmente os Guarani, não se sentem donos da terra ou dos recursos naturais. Pelo contrário, concebem-se como seres pertencentes e dependentes do ambiente natural. Para eles, Deus concedeu o direito ao usufruto da terra. Para tanto, devem conservá-la e respeitá-la.

A sobrevivência Guarani, material e espiritual, está salvaguardada pelo bom uso que fazem da terra. Os recursos naturais não podem ser degradados porque são sagrados. Aliás, tudo aquilo que provém do meio natural e que está associado a sua sobrevivência está embutido de um valor religioso.  

Tão logo, em face do modo como as sociedades indígenas vivem, de sua organização social e vivência intrínseca à natureza, considerada como um elemento sagrado, o presente artigo é norteado pela seguinte questão: qual a contribuição da cultura indígena para a relação sociedade x natureza mantida pelas sociedades ditas convencionais? Teria a crise multidimensional suas raízes no esquecimento da sacralidade em relação ao meio natural?

Talvez o pragmatismo e a visão cartesiana, que tanto progresso tecnológico e material trouxe às sociedades modernas, acabem nos privando de uma visão sistêmica, entretanto, necessária para compreensão da problemática ambiental em sua totalidade.

            Para tanto, traçou-se um panorama histórico da evolução da relação sociedade x natureza, adentrando enfaticamente na concepção indígena sobre o ambiente natural. Com o propósito de coletar dados e informações in loco, houve a oportunidade de visitar três aldeamentos da cultura Guarani Mbyá, dois deles em Santa Catarina e um no Paraná.          

            Em se tratando de uma comunidade indígena, além de entrevistas informais com os representantes do aldeamento, muniu-se de observações in loco e registro em diário de campo. Diante dessa possibilidade, caracterizou-se o modo de ser Guarani, contemplando a sua incansável busca pela Terra sem Mal, o que nos remete, metaforicamente, a um lugar não edificado, inalterado pelas mãos do homem, livre de qualquer forma de poder e dominação.

 

2 O ÂMAGO DA QUESTÃO: A RELAÇÃO SOCIEDADE X NATUREZA

 

              Para Brügger (1994, p. 13), o cerne da questão ou pelo menos parte, é a resposta da seguinte pergunta: “por que a nossa sociedade tem essa relação com a natureza?”. Dias (2004) acredita que agredimos o meio ambiente porque nos fizeram acreditar em conceitos errados ao longo do tempo.

              Trevisol (2003) corrobora, quando afirma que o âmago da crise ecológica está na relação sociedade-natureza, cuja atual desordem decorre de uma complexa cadeia de relações entre o mundo humano e o mundo natural, materializada por um conflito entre a sociedade de consumo e a biosfera.

Soffiati (2002) reflete sobre a interação entre as antropossociedades, tanto arcaicas quanto civilizadas, com a natureza não humana. A relação estabelecida entre as sociedades mais antigas, nômades ou seminômades, baseava-se em uma concepção holístico-sagrada, de modo que a natureza não precisava ser explicada ou compreendida, bastava simplesmente que fosse adorada; não havia distinção entre os seres vivos e os demais seres.

Branco (2003) escreve sobre a trajetória da problemática ambiental e afirma que a crise multifacetada tem sua gênese na crise da própria existência humana. A autora relata que durante praticamente toda a Idade Média admitia-se uma relação de coexistência, na qual o homem dependia integralmente da natureza para sobreviver.

Capra (1995, p. 49) esclarece que nesse período a visão de mundo dominante era essencialmente orgânica: “As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, e vivenciavam a natureza em termos de relações orgânicas, caracterizadas pela interdependência dos fenômenos espirituais e materiais e pela subordinação das necessidades individuais às da comunidade”.

Embora seja difícil pensar ou conceber o homem como um ser que um dia já foi dependente da natureza, Trevisol (2003) caracteriza as grandes fases da história sob a ótica da relação entre o homem e o meio natural; e afirma que a primeira delas e mais extensa coincide com a organização social de base agrária. As civilizações do mundo pré-moderno faziam parte da fase de dependência e de temor à natureza.

No entanto, na medida em que as técnicas rudimentares foram deixadas de lado e a agricultura e o pastoreio se inseriram nas comunidades, houve a conversão dos ecossistemas nativos em antrópicos. Tão logo, o processo de dessacralização do mundo teve início com a agricultura e a pecuária, avançando com a Revolução Urbana e, posteriormente, com a construção de grandes obras hidráulicas e intervenções mais profundas. Embora o sagrado não tivesse desaparecido em sua totalidade, criou-se uma dicotomia angustiante (SOFFIATI, 2002).

De acordo com Montibeller (2008, p. 35), quando o homem busca conhecer mais profundamente a natureza através do desenvolvimento de tecnologias para suprir suas necessidades naturais ou socialmente determinadas, age sobre ela com a intenção de obter melhores resultados. “O sujeito passa, então, a dominar o objeto”. E é nesse momento que se dá a dessacralização da natureza, como já colocou Soffiati (2002), e que as relações orgânicas e de interdependência perdem seu sentido.

Boff (2000, p. 27) comenta que a partir da época representada pela Revolução Agrícola: “[...] domesticaram-se animais e plantas, irrigaram-se campos, criaram-se vilas e cidades e garantiu-se a infraestrutura da subsistência material dos seres humanos”.

Desse modo, Trevisol (2003) caracteriza a segunda fase da história como a fase de dominação da natureza, concebida pelo surgimento da modernidade e pautada pela visão antropocêntrica do universo. Nesse período, a ciência foi completamente modificada pelo racionalismo moderno e pela Revolução Industrial. Segundo tal concepção, o homem a partir de então, definitivamente, não fazia mais parte da natureza.

A Revolução Industrial é considerada um marco histórico, pois representou em termos tecnológicos um grande avanço para as sociedades modernas. Mas a que custo, indaga Boff (2000), tendo em vista que as sociedades humanas produziram uma organização social inautêntica e não simbiótica que reforça o poder do patriarcado, admite a destruição da natureza e impede a auto-regeneração do ecossistema como um todo (CARVALHO, 1999).

Lima (2002) também pondera sobre as passagens da história que marcaram a trajetória da relação da cultura ocidental com o ambiente natural e construído. O autor destaca nessa retrospectiva histórica, além da Revolução Industrial, as contribuições que tiveram a empresa neocolonial, os projetos expansionistas das nações industriais, além das duas grandes guerras mundiais e o episódio nuclear.

Brandenburg (1996) afirma que as transformações provocadas pelo desenvolvimento tecnológico intensificaram-se quando a ciência por interesse da indústria, colocou-se a serviço da técnica. A partir da reorganização da produção por intermédio da inovação tecnológica, elevaram-se os índices de produtividade e rentabilidade.

Nesse sentido, a ruptura entre o homem e seu entorno está associada ao domínio da natureza pela ciência e pela técnica. As diversas formas de degradação ambiental retratam sintomas de uma crise regida pelo predomínio da razão tecnológica sobre a organização da natureza.

Logo, a passagem da situação de dependência para a dominação da natureza se deu a partir da Revolução Industrial e foi consolidada pelo progresso acelerado da ciência e da tecnologia. Seguindo o raciocínio de Trevisol (2003), trata-se da fase de criação da natureza, passível de transformação e de controle pelo homem.

             

3 AS SOCIEDADES INDÍGENAS E O AMBIENTE NATURAL

                  

            A palavra índio é de origem européia e se refere às populações nativas que se desenvolvem culturalmente a partir de relações intrínsecas com o meio natural, cuja forma de organização na maioria dos seus aspetos ainda se difere da organização social convencional. Na opinião de Jecupé (1998), trata-se de uma cultura que se desenvolve intimamente ligada à natureza e mantém relações de igualdade e reciprocidade para com ela.

            Luna (1964) conta que quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia cerca de 76 tribos, divididas em cinco grupos distintos. Os Tupis-Guaranis eram a maioria e habitavam uma larga faixa litorânea que se estendia do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul. Segundo o autor, os índios estavam abandonando os hábitos nômades e dedicando-se às práticas agrícolas. O regime comunal e os princípios da coletividade eram praticados através de um sistema eletivo e hereditário.

            Silva (1988) atribui alguns aspectos comuns a todas as tribos, indiferentemente da localização e da língua falada: o modo como o índio se relaciona com o seu próximo e a relação de respeito e dependência que o índio estabelece com o meio onde ele vive.

            De acordo com Jecupé (2001, p. 61), a maior contribuição que os povos da floresta podem deixar ao homem branco é a prática de seu uno com a natureza interna de si. “A Tradição do Sol, da Lua e da Grande Mãe ensinam que tudo se desdobra de uma fonte única, formando uma trama sagrada de relações e inter-relações, de modo que tudo se conecta a tudo”.

 

 

 

 

3.1 O MODO DE SER GUARANI E A BUSCA PELA TERRA SEM MAL

 

            Os Guarani representam um dos maiores grupos indígenas do Brasil, cujas populações habitavam predominantemente as florestas subtropicais da América do Sul (LITAIFF; DARELLA, 2000).

            Relacionado aos subgrupos Guarani, Guimarães (2005), a partir de um Panorama Guarani (Mbyá, Nhãndeva, Kayová e Chiriguano), relata que ao longo do tempo e do espaço, os Guarani passaram por eventos que incrementaram a sua cosmologia, diante da criação de múltiplas soluções para o seu maior problema: a superação da condição humana. Embora apresentem práticas sociais e visões de mundo semelhantes, os Guarani disseminados nos mais diversos lugares, desenvolveram formas específicas que os caracterizam como um grande grupo.

            Brandão (1990, p. 7) explica que o modo de ser Guarani refere-se a um modo peculiar, “assumido e proclamado como uma identidade realizada como um sistema ancestral de crenças destinado a conduzir tanto a história de um povo quanto a conduta cotidiana de cada uma de suas pessoas, é definido como uma religião”. Conforme os subgrupos Guarani, há um Deus supremo, um criador do mundo terreno, e o sagrado sugere a busca por um estado próximo da perfeição.

            A Tekhoa é forma como o Guarani se refere a sua terra e não a compreende somente um local de moradia física, de onde retira a subsistência, mas um espaço onde sua cultura se desenvolve. Logo, a terra tem muito valor para o índio Guarani, pois representa um referencial sagrado e está fortemente associada a sua identidade (LITAIFF; DARELLA, 2000).

            Lavina (1995) afirma que o Guarani estabelece um vínculo osmótico com a terra, de modo que quando ocorrem interrupções nesse processo, eles procuram por espaços que lhes ofereçam melhores condições materiais e imateriais. Os Guarani têm sua visão de mundo indissoluvelmente ligada a sua religião.

            O lugar onde vivem abriga comumente uma família extensa que representa um ente sócio-político, econômico e territorial, considerada a estrutura básica da sociedade Guarani. Lavina (1995) explica que a legítima aldeia é formada por círculos concêntricos com casas, pátios e roças em meio à mata. São espaços interligados, onde constroem seu modelo de economia e reciprocidade. A economia é baseada no princípio da solidariedade com o próximo, através de uma obrigação moral de ajudar quando necessário. A generosidade também é uma das virtudes dessa sociedade.

            O canto e a dança são formas de manutenção da força espiritual e corporal, bem como, um meio de comunicação com as dividindades. Os instrumentos e as letras têm o papel de chamar os deuses. O povo Guarani fortalece sua religião através de rituais e das festividades, que servem para reafirmar os laços sociais que mantém a comunidade em harmonia (LAVINA, 1995).

            Dentre as diversas particularidades do povo Guarani, destaca-se a prática de rituais religiosos, danças, entoação de cantos e o emprego de instrumentos musicais típicos (LITAIFF; DARELLA, 2000).

            A oralidade, uma das principais armas de resistência ao processo de desaculturação, é exercida de geração para geração com a finalidade de transmissão da própria linguagem, bem como, dos segredos seculares da economia da reciprocidade, do equilíbrio e respeito com o meio ambiente.

            Jecupé (2001) afirma que a degeneração social dos Guarani é decorrente da escravidão e das guerras, bem como, da imposição de uma religiosidade em detrimento da religiosidade nativa, a qual afetou notadamente o ritmo cultural desse povo.

            Ressalta-se que entre os Guarani há um desejo coletivo da busca pela Terra sem Mal. Brandão (1990) assegura que não se trata somente de um lugar para onde os Guarani devem se deslocar em busca de uma vida sem morte ou sem mal. Ela é também referenciada como um tempo, haja vista que para os Guarani, um cataclismo próximo destruirá a terra má e se salvarão apenas aqueles que estão em marcha para a Terra sem Mal, um lugar sagrado; a terra da salvação. Para esse povo, toda catástrofe de que se tem notícia, é um prenúncio da destruição da terra.

            Nesse sentido, conforme Lavina (1995), ocorre que a busca pela Terra sem Mal se dá em terra de mal, onde os perigos inibem a socialização cultural desse povo. O mal está presente tanto fora, quanto dentro da aldeia, através dos desentendimentos, da proliferação de doenças, do esgotamento do solo, de colheitas insuficientes e da presença de pragas nas matas.

            Lavina (1995) pondera sobre a característica de migração atribuída ao índio Guarani e afirma que em muitos momentos de sua história, a razão pela qual eles migravam está relacionada à religião, que os estimulavam e conduziam na busca pelo paraíso prometido, um lugar onde os costumes indígenas seriam restabelecidos.

            Baseado em Noemi Dias Martínez, que possibilita outra compreensão do nomadismo secular dos Guaranis, Brandão (1990, p. 16) afirma que a Terra sem Mal é na verdade um lugar ainda não edificado, inalterado pelas mãos do homem, de solo intacto. De toda forma, o autor salienta que “a procura sem fim por uma Terra sem Mal é a recusa ativa da sociedade, de sua vida em seu estado negador da natureza”.

            Para muitos índios, esse lugar é a negação da vida social, um local onde houvesse a abolição de qualquer forma de poder. Para Melià (1986 apud LAVINA, 1995), trata-se de um lugar resultante da combinação entre a terra física e a terra mística, nas quais poderiam ser vividas antigas tradições indígenas.

            Segundo Guimarães (2005), os Guarani do subgrupo Mbyá foram os que se mantiveram mais distantes do processo de colonização, uma vez que habitavam os lugares mais remotos e não admitiam qualquer contato com os brancos. Atualmente, se encontram nas regiões sul, sudeste e nos estados do Tocantins e Maranhão.

            Constituem práticas comuns aos Mbyá: a migração, o deslocamento em busca de novas terras; a mobilidade, o movimento de intercâmbio entre as aldeias; a economia de reciprocidade; a importância atribuída à terra ocupada; a transmissão transgeracional do conhecimento; e o caráter preservacionista do seu povo.

            As famílias Mbyá são bastante extensas e nucleares, constituídas geralmente pelo casal, pais, filhos solteiros e casados, genros e netos. São famílias em que a endogamia é cultivada. Além disso, há a obrigação de moradia na aldeia. As atividades realizadas caracterizam-se pela agricultura de pequena monta, pela criação de animais de pequeno porte e prestação de serviços aos regionais, bem como, pela venda de artesanatos (LITAIFF; DARELLA, 2000).

 

4 CONTRIBUIÇÕES DA CULTURA GUARANI MBYÁ

 

            Em função do contato de um dos autores com aldeamentos indígenas, houve a oportunidade visitar três comunidades: “Cachoeira dos Inácios”, “Pedras que rolam” e “Arco-íris”, situadas, respectivamente, nas cidades de Imaruí (SC), Biguaçu (SC) e Piraquara (PR), todas representantes da cultura indígena Guarani Mbyá.

            No que se refere à situação fundiária, a aldeia localizada em Imaruí, na qual vivem cerca de 140 índios, está sob a condição de reserva indígena ainda em fase de regularização. A aldeia situada em Biguaçu, com aproximadamente 30 índios, entre mulheres, homens e, sobretudo, crianças, foi constituída pela migração de índios remanescentes da aldeia Cachoeira dos Inácios e está sob a condição de Terra Protegida, contudo, sem providências para o início do processo de demarcação. A aldeia de Piraquara, da mesma forma, com uma população de 59 índios, encontra-se sem demarcação.

            Na aldeia de Biguaçu, o pajé que também é o cacique da aldeia, ou seja, exerce paralelamente a função religiosa e política, falou sobre a necessidade de busca por um novo lugar, onde pudessem viver de acordo com o modo de ser Guarani, visto que a aldeia de Imaruí já estava pequena para tantos índios. A perda de identidade evidenciada por ele devia-se também ao problema do alcoolismo entre muitos índios.

            De todo modo, os Guarani tentam manter suas características de organização social em relação à distribuição das suas casas, as ocas, nos espaços disponíveis, conforme o que lhes aconselham Nhanderu em seus sonhos. As escolhas não são feitas ao acaso, “é preciso senti se aquele local é o melhor”. Percebeu-se e confirmou-se quão importante e simbólica a terra é para os Mbyá visitados, e que é dela que deveria ser tirado o sustento da aldeia. O Guarani também valoriza muito as fontes de água e zela por ela.

            Sobre a organização do trabalho nas aldeias, há uma conversa com todos, na qual são determinadas suas tarefas e todos devem participar para que tenham direito aos benefícios: “Primeiro a gente conversa, chama todo mundo, homem, mulhe e criança, tudo em organização, tudo em comunidade”.

            Referente à religião, a casa de reza equivale às nossas igrejas ou templos e representam um elemento fundamental, até mesmo vital, nas típicas aldeias Guarani. E não apenas nos rituais nas casas de reza, na Opy, mas em inúmeros momentos do dia-a-dia nas aldeias, verificou-se o quanto o sagrado ainda permeia o ser Guarani, que se mostra extremamente gentil e benevolente, sustentado pela certeza de um fundamento espiritual e amoroso que rege a vida e o universo.

            Os Mbyá acreditam que Deus tirou de si mesmo a matéria-prima para manifestar a criação. Do mesmo modo que o taoísmo chinês é representado pelo ying-yang, o Guarani acredita que Nhanderu, de uma pequena porção de si mesmo, engendrou o par de opostos complementares, de cuja dinâmica resultou o universo e, por conseguinte, toda a criação; sendo o amor, o fundamento para tudo.

            Igualmente aos antigos povos clássicos e algumas das civilizações americanas pré-colombianas, os Mbyá atribuem ao sol sua divindade mais evidente e próxima, como reflexo de um grande Deus; creem que em um passado mítico de longevidade milenar e misteriosa, o sol habitou este chão e deixou reflexos de sua passagem e, portanto, de sua sacralidade. Tão logo, tudo é sagrado, seja pela origem única e divina de todas as coisas, ou pela presença do sol na terra em tempos imemoriais.

            Verificou-se que o canto e a dança são manifestados na aldeia de Biguaçu através de um coral formado exclusivamente pelas crianças, liderado pelo filho do cacique, que se apresenta em diversas cidades divulgando a cultura Guarani e, obviamente, contribuindo para a arrecadação de recursos e manutenção da aldeia, cuja renda provém também de donativos e da comercialização de artesanatos confeccionados pelas mulheres, haja vista que a terra não oferece condições suficientes para a prática do plantio de subsistência.

            Percebeu-se que o contato entre os índios e os brancos, não somente nas apresentações musicais, mas diante da necessidade de regularização fundiária, influencia negativamente o modo de ser Guarani e reflete-se no jeito como se vestem. O filho do cacique, por sua vez, sofreu fortemente a influência do contato com o branco; se veste como um cidadão urbano: jeans, tênis, camiseta, boné, mochila, porta um celular e alguns acessórios indígenas.

            No que diz respeito ao ambiente natural, para os Guarani, a natureza é uma manifestação de divindades e espíritos. Tudo é vivo e povoado por espíritos: as árvores, as pedras, as águas, as montanhas. Tudo merece respeito e deve ser utilizado ou tirado do seu lugar natural, somente por necessidade e pedido de licença. Uma árvore só é cortada, após ouvir todas as explicações do quanto vai ser importante para a aldeia.

            Quando questionados sobre sua relação com a natureza; explicam que o trabalho de conscientização inicia com as crianças. O filho do cacique da aldeia de Biguaçu conta o seguinte:

 

[...] a gente começa dentro da escola, a gente chama os mais velho. A minha vó que tem noventa anos, ela tem conhecimento de toda a cultura e ela dá palestra pras criança, então ela passa as palestra, depois as criança vão escrevendo o que ela tá falando sobre a natureza, como a gente tem que cuida. Dentro da escola, a gente aprende mais assim, sobre a preservação da natureza mesmo e a continuação da reza, da casa de reza.

 

            A Secretaria da Educação dispõe de professores que lecionam formalmente conforme o grupo decide. As crianças aprendem até a primeira série, somente o Guarani e nas séries posteriores, há a inserção de outras disciplinas, com o português e a matemática. Todavia, durante as palestras, a matriarca da aldeia conta às crianças sobre as épocas de caça, onde é permitido pescar, enfatizando a história do povo, para que valorizem sua cultura e aprendam o que não deve ser feito, sobretudo, sob influência do homem branco.

            As aulas também são dadas na casa de reza. “Essa coisa ai do sol, da lua, a gente vai trabalha ainda, porque a gente tá construindo a casa de reza, fica lá atrás. Então, vai ser dado aula também dentro da casa de reza, sobre essas coisas”. E assim como as moradas, a casa de reza não é construída em qualquer lugar: “Agora pra fazer a casa de reza, a gente faz através dos sonhos, né. O pajé tem que sonha pra faze a casa de reza. Primeiro a gente reza, pra que Deus mostre pra gente”.

            Os Guarani vivem imersos em seus contatos com espíritos da natureza e com os anjos, que lhes informam através de sonhos, notícias de parentes distantes, eventos e visitas que estão por acontecer. E sabem também da existência de forças e espíritos de natureza inferior, com os quais lutam para sobreviver.

            No que se refere à religião e ao sagrado, os Guarani acreditam que há um único Deus, que criou tudo e que dá o direcionamento para a aldeia através das ações do pajé. Deus concede os sonhos ao pajé, para que ele saiba o que fazer e em quais momentos. Atualmente, a referência sagrada para os Guarani é o sol.

            Ademais, tais aspectos nos fazem compreender que o sagrado não é apenas aquele que habita o plano superior, a morada dos deuses e dos anjos que administram a criação. Toda a vida e seus movimentos são preenchidos e revestidos pelo sagrado. De uma forma não abstrata, mas vívida, coerente e dentro de uma lógica muito distante e difícil para o nosso jeito funcional, utilitário e pragmático compreender.

            O objetivo da vida, de acordo com o Guarani, é a nossa evolução até a perfeição. Ressalta-se que o que mais chama a atenção nos primeiros contatos com os Guarani, é a sua extrema paciência, sua resignação, espontânea alegria e respeito por tudo e todos que se aproximam. Mas, como poderiam estar tão tranquilos e resignados, com tamanha miséria e injustiça? Eles acreditam que pertencem à Mãe Terra e que o tempo é cíclico; não há o que apressar. Ao contrário, eles esperam por um novo ciclo: temos que ter paciência com os brancos, o branco pensa que sabe muito, mas se Nhanderu abrir o céu e mostrar tudo, ele (o branco) não aguenta”.

                    

CONCLUSÃO

 

            O processo aculturativo desencadeado nas aldeias visitadas provocou mudanças significativas nos padrões culturais do povo Guarani, sobretudo, pela necessidade de contato direto e permanente com grupos de cultura diferenciada. Os contatos são necessários pela questão da regularização fundiária e mesmo pela sobrevivência dos índios, que alocados em terras improdutivas, precisam vender seu artesanato e desenvolver outras formas de sobrevivência.

            De todo modo, é evidente que o Guarani luta pela preservação de sua cultura. A migração do povo para um novo local representa uma forma de resistência ao modelo do homem branco e por consequência, ao alcoolismo e à quebra de suas tradições. A busca pela Terra sem Mal é a busca por um lugar onde possam viver em harmonia com o seu próximo e com a natureza.

            A transmissão do conhecimento e de suas particularidades, a oralidade Guarani, se dá através do representante mais experiente da aldeia, tendo em vista que o ensinamento indígena Guarani se fundamenta na importância da preservação do meio natural e da existência e uso da casa de reza.

            Ressalta-se que durante as imersões nas aldeias Guarani Mbyá, o que de fato salta aos olhos é o profundo desprendimento dos bens materiais e seu extremo zelo com o próximo. Em contrapartida a uma cultura material aparentemente tão pobre, os Guaranis são dotados de extrema sofisticação espiritual e de uma ética, que nos falta nas relações com o outro e com o próprio ambiente natural.

 

REFERÊNCIAS

 

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Ilustrações: Silvana Santos