Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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10/09/2018 (Nº 45) PERCEPÇÃO AMBIENTAL SOBRE O CONHECIMENTO POPULAR DE MORADORES RURAIS RELATIVO AS SERPENTES E ACIDENTES OFÍDICOS
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Metodologia

PERCEPÇÃO AMBIENTAL SOBRE O CONHECIMENTO POPULAR DE MORADORES RURAIS RELATIVO AS SERPENTES E ACIDENTES OFÍDICOS

 

Maria Rita Silvério Pires1*

Lorena Cristina Lana Pinto2

Mariana Rodrigues Oliveiera de Figueiredo3

 

1*Laboratório de Zoologia dos Vertebrados, Departamentos de Evolução, Biodiversidade e Meio Ambiente, Universidade Federal de Ouro Preto, Campus Morro do Cruzeiro, Ouro Preto, Minas Gerais, CEP 35.400000. mritspires@iceb.ufop.br;

2 Mestre em Ecologia pelo programa de pós graduação em Ecologia de Biomas Tropicais, Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais.

3 Bacharel em Ciência Biológicas pela Univeridade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais.

 

Resumo

Com o objetivo de obter informações relativas ao conhecimento popular sobre as serpentes, incluindo as práticas adotadas em casos de acidentes ofídicos foi desenvolvido o presente estudo no povoado de Itatiaia na Serra do Ouro Branco, Minas Gerais. Utilizando os princípios da etnozoologia, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e livres com 60 moradores do povoado entre setembro de 2007 a maio de 2008. Para a maior parte dos entrevistados, a atitude a ser tomada quando se deparam com uma serpente é matar. O conhecimento da população a respeito da biologia desse grupo foram compatíveis com os dados da literatura. Alguns mitos locais puderam ser registrados, desses, a maioria já era conhecida por meio de trabalhos realizados nas regiões norte e nordeste do Brasil. Em relação aos acidentes ofídicos a utilização de fitoterapia no tratamento de picada de serpente foi representada localmente pelo uso de fumo, puro ou associado a cachaça. Três dos quatro moradores que sofreram acidente ofídico, afirmaram ter procurado benzedor como forma de tratamento. Mais da metade dos entrevistados disseram procurar ajuda médica como atitude complementar à benzeção. Com a morte dos benzedores e consequente descrença e desinteresse dos demais moradores essa prática se extinguiu no povoado.

 

Palavras-chave: Etnozoologia, Ofidismo, Itatiaia

 

 

 

Abstract

 Aiming to obtain information on the popular knowledge about snakes, including the practices adopted in case of snake accidents, the present study was carried out in the rural village of Itatiaia, Serra do Ouro Branco, Minas Gerais state. Using the principles of ethnozoology, semi-structured and free interviews were made with 60 residents of the village between September/2007 and May/2008. For the most part of the interviewees, the attitude taken when coming across a snake is the one of killing the snake. The knowledge of the population concerning the biology of this group was in agreement with data found in literature. Some local myths were registered, most of which had already been known through works preformed in the northern and northeastern regions of Brazil. Concerning the snake accidents, the use of phytotherapy to treat snake bites was locally represented by the use of tobacco, pure or mixed with sugarcane brandy. Three out of the four individuals who had been bitten by a snake claimed to have searched for a faith healer as treatment. Over half of the interviewees claimed to have searched for medical assistance as complementary to the faith healer. With the death of the healers and consequent disbelief and lack of interest of other residents, this practice also died out in the village.

 

Key-words: Ethnozoology, snake bites, Itatiaia Village

 

Título resumido: Conhecimento popular sobre serpentes e acidentes ofídicos

 

Introdução

Na história da humanidade, várias evidências demonstram o quão antiga é a relação entre homens e animais. Sendo a dependência e co-dependência entre os seres humanos e os animais (ALVARD, 1997) percebidos através dos diversos usos da fauna e de seus produtos no comércio, na alimentação, nos rituais mágico-religiosos, na domesticação e, ainda, por meio das relações harmoniosas ou conflituosas (ALVES et al., 2009a; SANTOS-FITA et al., 2009).  Nesse contexto, as serpentes podem representar para os homens, de acordo com a sua cultura, tanto a sabedoria e ressurreição, quanto à própria personificação do mal (ALVES; PEREIRA-FILHO, 2007).

Segundo a Bíblia Sagrada, as serpentes representam o mal, levando Adão e Eva a pecarem e serem expulsos do paraíso. Além disso, devido às suas características anatômicas e sua biologia, esses animais receberam ao longo da história da humanidade várias simbologias como: pecado, sexualidade, repugnância, adoração, poder de morte e de cura (SILVA et al., 2004; MARCUM, 2007).

As serpentes constituem no imaginário humano ocidental a representação do mal e por esse motivo, são freqüentemente associadas a adjetivos como: repugnante, repulsivo, cruel e traiçoeiro (ARAÚJO, 1978). Essa percepção humana, associada aos aspectos da cultura popular, pode influenciar negativamente o modo como as pessoas interagem com as serpentes (VIZOTTO 2003; SILVA, 2006), aspecto que implica diretamente na conservação deste grupo zoológico (ALVES et al., 2009a).

No Brasil, são registradas mais de 370 espécies de serpentes (BÉRNILS, 2010), sendo que, 124 dessas ocorrem em Minas Gerais (BERTOLUCI, 1998) e das 28 espécies encontradas na Serra do Ouro Branco, apenas cinco são peçonhentas, ou seja, potencialmente causadoras de acidentes humanos (SÃO PEDRO; PIRES, 2009). No entanto, para muitas pessoas, estes animais são conhecidos exclusivamente pela periculosidade atribuída a tais espécies, ignorando a importância das interações que este grupo realiza com os demais animais (LIMA-VERDE, 1994). Segundo Gilmore (1986) a curiosidade, o medo e o fascínio que as serpentes podem gerar nas pessoas, tornam este grupo de grande importância para o estudo etnozoológico.

De acordo com Marques (2002), a etnozoologia é o estudo transdisciplinar dos pensamentos, percepções, sentimentos e comportamentos que mediam as relações entre os seres humanos com os animais. Por sua vez, a etnoherpetologia, uma subárea da etnozoologia, investiga a interação humana com a fauna de anfíbios e répteis (BARBOSA et al., 2007).

Em algumas regiões do país como Norte e Nordeste, há um destaque nas pesquisas etnozoológicas, incluindo o estudo de diversas espécies da herpetofauna que são utilizadas na medicina tradicional e em rituais religiosos (ALVES; ROSA 2006; ALVES et al., 2007; ALVES; SANTANA 2008; ALVES et al., 2009b). A investigação do conhecimento zoológico tradicional permite a compreensão das interações do homem com o ambiente, sendo fundamental na formulação de estratégias para a conservação de recursos naturais junto às comunidades locais (ALVES; ROSA, 2005; BARBOZA et al., 2007).

No ano de 2008, a partir de um projeto de levantamento da herpetofauna da Serra do Ouro Branco, vários moradores do povoado de Itatiaia contribuíram na captura e armazenamento de serpentes nos postos de coleta (SÃO PEDRO; PIRES, 2009). Nessa ocasião foram relatadas por essas pessoas muitas informações referentes às serpentes encontradas no local, incluindo, nomes populares e procedimentos em casos de acidentes ofídicos. Dessa iniciativa surgiu a motivação para o desenvolvimento do presente trabalho, o qual teve por objetivo estudar a relação dos moradores de Itatiaia com as serpentes, além das práticas adotadas em caso de acidentes ofídicos. Para tanto, foi realizada inicialmente uma caracterização da população quanto a alguns aspectos sociais e econômicos.

 

Material e Métodos

Área de estudo

O povoado de Itatiaia (coordenadas geográficas 20°29’S e 43°35’O) situa-se na porção sul da Serra do Espinhaço, entre as cidades de Ouro Branco e Ouro Preto no estado de Minas Gerais, Brasil. A Serra do Espinhaço é reconhecida como reserva da Biosfera, devido à biodiversidade encontrada no local, incluindo espécies endêmicas da fauna e da flora e as maiores formações de campo rupestre do Brasil (UNESCO 2005). Sendo assim, este povoado está inserido em uma “Área de Importância Biológica Especial” para a conservação de répteis em Minas Gerais (DRUMMOND et al., 2005).

O período de sua fundação é impreciso, mas certamente se deu no final do século XVII ou início do século XVIII. Com o final do ciclo do ouro, este povoado perdeu a sua importância estratégica e se desenvolveu relativamente isolado das cidades vizinhas, principalmente devido a topografia da região. A partir de 2002, o trecho da Estrada Real que liga a cidade de Ouro Preto a Ouro Branco foi asfaltado, melhorando o acesso da população de Itatiaia a essas cidades, inclusive com linhas regulares de ônibus. Desta forma, o povoado se tornou mais conhecido e apreciado por turistas das regiões vizinhas.

Levantamento de dados

A coleta dos dados foi feita entre os meses de setembro de 2007 a maio de 2008, através de entrevistas semi-estruturadas e complementada com entrevistas abertas (HUNTINGTON, 2000). As entrevistas tiveram por objetivo investigar os acidentes ofídicos no povoado e suas formas de tratamento, além dos conhecimentos dos moradores sobre as serpentes. Estas consistiram em um formulário contendo questões relativas à atitude humana frente às serpentes, informações relativas a acidentes ofídicos além dos mitos e crenças locais sobre as serpentes.

Inicialmente, procurou-se conhecer a população e identificar “especialistas nativos”, ou seja, pessoas reconhecidas pela própria comunidade como conhecedora do assunto estudado (MARQUES, 1995). A entrevista aberta foi aplicada aos especialistas que se prontificaram a falar mais sobre serpentes. Estas foram gravadas, com a permissão do entrevistado, em fita cassete e, posteriormente transcritas, mantendo a linguagem nativa.

O método de amostragem foi não probabilístico e intencional (ALBUQUERQUE et al., 2008), tendo sido entrevistado ao menos um morador por casa, maior de 18 anos, de ambos os sexos. Os dados foram analisados seguindo o modelo de união das diversas competências individuais, ou seja, todas as informações fornecidas pelos entrevistados foram levadas em consideração (HAYS 1976 apud MARQUES, 1991).

 

Resultados

Itatiaia é constituída de 80 domicílios sendo, em sua maioria, casas simples de alvenaria e também de pau-a-pique. Foram entrevistados 60 moradores com idade acima de 16 anos. Não foi possível entrevistar toda a população, pois muitos trabalham fora do povoado mesmo nos finais de semana. A maior parte da população entrevistada foi do sexo feminino, assim o povoado foi representado em 70% por mulheres. Mais da metade da população tem idade acima de 45 anos, sendo a maioria representada por donas de casa e aposentados ocupados por atividades rurais como criação de animais e agricultura de subsistência.

A população de Itatiaia apresenta baixo nível de escolaridade, sendo 57% dos moradores com o ensino fundamental completo e apenas 17% com o ensino médio concluído. Um aspecto relevante neste trabalho, é que a população é composta, em sua maioria, por famílias que têm a sua história ligada ao lugar, uma vez que 67% dos moradores são nativos de Itatiaia. Os 32% dos moradores que não são nativos mudaram para o povoado por terem se casado com pessoa nativa ou para buscar melhor qualidade de vida Do ponto de vista religioso, Itatiaia se mostrou bastante tradicional e unificada, uma vez que 90 % da população é católica.

           

Relação homem e serpente

A atitude tomada por 58% dos entrevistados quando avistam uma serpente é matar o animal independentemente deste representar algum perigo real. Os demais entrevistados afirmaram fugir (5%), capturar ou matar, quando se sentem ameaçados (14%), não fazer nada (21%) ou ainda, levar o animal para a polícia florestal (2%). Mais da metade dos entrevistados acredita que toda serpente é perigosa, e por isso, devem ser mortas.

Durante as entrevistas abertas, foram registrados alguns comentários quanto a necessidade de matar as serpentes, alguns deles se referindo ao animal como um representante do mal e outros relacionando ao perigo, como nos comentários abaixo:

“Eu mato ela, esse bicho não é abençoado nada, mata mesmo né...”;

“Eu num perdôo um, mata esse bicho não, tem que vivê, que vivê, bicho desse tamanho, vivê! Mordê a gente, matá a gente!”

Em relação ao período do dia e época do ano de maior encontro com as serpentes, a população demonstrou conhecimento condizente com as informações da literatura obtidos a partir de Marques; Sazima (2003). Segundo os entrevistados, é comum o encontro com serpentes nos períodos diurno e noturno, sendo no verão, período correspondente à estação chuvosa para a área de estudo, a época do ano que elas estão mais ativas e mais fáceis de serem avistadas.

Quanto ao hábitat das serpentes, foram citadas nas respostas as expressões: mato, árvore, cupinzeiro, cafezal e lugar onde tem pedra. Nesse sentido, foi observada concordância entre o conhecimento popular e os estudos de história natural das serpentes, pois segundo Marques; Sazima (2003) as serpentes são classificadas quanto ao seu habitat como: terrícolas, arborícolas, aquáticas, criptozóicas ou subterrâneas.

Várias crendices sobre as serpentes foram fornecidas, conforme pode ser observado nas transcrições abaixo:

§ “Se puder matar, mata. Mesmo assim tem que matar e queimar porque o espinho é pior que ela viva”;

§ “Mulher grávida não pode chegar perto de quem foi ofendido, porque morre a mulher e o filho”;

§ “Quando morde não pode falar que mordeu, porque senão (o veneno) alastra no corpo”;

§ “Se contar que foi picado de cobra, naquele dia você morre. Procura o cara pra benzer, mas não fala que foi picado”;

§ “A cobra coral tem ferrão na boca e no rabo”;

§  “Não pode ter relação sexual até 40 dias depois da picada”.

Acidentes, formas de tratamentos e conhecimento popular

            Foram registradas quatro pessoas que sofreram acidente ofídico, representando 7% dos entrevistados. Como forma de tratamento, 75% dos acidentados (n=3) procuraram por benzedores, tendo sido descritos os seguintes procedimentos: 1) o benzedor encheu a boca de fumo e chupou o local da picada para retirar o veneno; 2) o benzedor passou fumo com cachaça no local da picada e 3) o benzedor rezou, não utilizando nenhum produto. As três pessoas que procuraram benzedores foram unânimes em afirmar que os procedimentos realizados foram eficazes no tratamento para picada de serpente.

A fitoterapia utilizada pelos benzedores foi representada apenas pelo uso de fumo, como ingrediente único ou então associado a cachaça. Não foi registrado procedimento de zooterapia no tratamento de picada de serpente, o que não exclui a possibilidade do uso de animais no tratamento de outras doenças e até mesmo no tratamento de acidentes com outros animais peçonhentos.

A prática de benzer não ocorre atualmente no povoado de Itatiaia. Esse fato foi observado, pois a maior parte dos entrevistados afirmou não ter conhecido nenhum benzedor sendo poucos aqueles que mencionaram ter conhecido algum. Os benzedores existentes no povoado já morreram e como esta prática não foi mantida por outras gerações, nos dias atuais, não há mais benzedores locais. A frase abaixo demonstra a percepção de um morador sobre os benzedores no povoado.

“... aqui tinha bons benzedor né. Benzia, miorava, tinha muito bom benzedor, agora certo tempo morreu todos”.

Dentre os entrevistados, 50% não acreditam que benzer cura picada de serpente, enquanto a outra metade acredita que pode curar afirmando: “depender da benzeção” e “depender da fé”. Contudo, essa parcela da população que diz acreditar na benzeção considera, ainda, o soro fundamental para garantir a cura.

Foi observada uma grande consciência dos moradores de Itatiaia a respeito das providências a serem tomadas em caso de acidentes ofídicos. A medida mais citada foi: levar a pessoa para o hospital (70%) e, se possível levar a cobra junto para que o médico possa dar o medicamento correto (10%). Procedimentos incorretos, como cortar a parte picada, sugar o veneno e a utilização de torniquete foram citados por apenas uma (2%) e duas (3%) pessoas respectivamente. Os outros 15% não responderam ou não saberiam como agir em caso de acidente com uma serpente.

 

Discussão

O contato dos moradores com as serpentes pode estar relacionado aos tipos de moradias encontradas em Itatiaia, cujos quintais estão próximos à mata. A manutenção de galinhas (Gallus gallus) e outros animais de criação favorecem a aproximação de serpentes. Essa aproximação é aumentada em função da existência de celeiros e paióis.

Na rotina da população local e em incursões na mata para a coleta de lenha, colheita de café, ou mesmo, nos passeios à represa e cachoeiras é comum o contato com serpentes. Dessa forma, as pessoas demonstram conhecer os períodos do dia e locais onde as elas são encontradas. O conhecimento sobre a sazonalidade das serpentes também foi relatado por MOURA et al., (2011) em trabalho desenvolvido na Serra do Brigadeiro, na zona da Mata de Minas Gerais.

Ficou bastante clara a importância que tiveram os benzedores para a cura de picadas de serpente pelos moradores locais em tempos passados. Entretanto esta prática não se manteve em Itatiaia, o que pode ser conseqüência do desinteresse das gerações mais novas em aprender as rezas e adquirir tal conhecimento, ou pelo fato de grande parte da população mais jovem deixar o povoado para estudar e trabalhar nas cidades vizinhas.

Tendo em vista a melhoria do acesso aos hospitais da região, a prática de benzer perdeu sua importância, como também foi observado no trabalho de Santos-Fita et al. (2010), desenvolvido no povoado de Pedra Branca, BA. Apesar do baixo nível de escolaridade dos moradores de Itatiaia, eles demonstraram tendência a procurar primeiramente o atendimento médico em casos de acidentes ofídicos ou outros males e consideram a benzeção como uma prática complementar.

O índice de acidentes ofídicos no povoado é relativamente baixo se comparado aos estudos de Silva (2006) e Lima et al. (2006). No entanto, as espécies de serpentes das famílias Viperidae e Elapidae foram as mais freqüentemente registradas nos levantamentos faunísticos realizados na Serra do Ouro Branco e região (SÃO PEDRO; PIRES 2009, SILVEIRA et al. no prelo), o que aparentemente poderia indicar maior probabilidade de acidentes.

Nos trabalhos de Moura et al. (2011) e Silva (2006) também foi relatada uma grande tendência em matar as serpentes sempre que avistadas. Essa atitude em relação a estes animais é prejudicial à conservação da biodiversidade e, muitas vezes, está relacionada à cultura, pois as serpentes e outros animais serpentiformes são associadas ao perigo, ao medo e a inúmeros outros atributos negativos, ou ainda, devido à prevalência de conhecimentos inadequados sobre as serpentes (MATEUS et al. no prelo; DREWS, 2002 ).

Quanto aos mitos relacionados às serpentes, alguns parecem ser amplamente conhecidos, inclusive em outras regiões do Brasil. No geral, as crenças relativas às serpentes são comuns em outras áreas geográficas, variando apenas a espécie animal envolvida e os contextos sociais, culturais e ambientais (NOMURA, 1996; VIZZOTO, 2006).  No trabalho de Silva (2006), no município de Rio Branco no estado do Acre, também foi registrada a crença de que existe veneno no espinho das serpentes e que, portanto, estas são perigosas mesmo depois de mortas. De acordo com Lima et al. (2006), ficar de quarentena sem fazer sexo foi uma crença relatada pelos agricultores de Tacaratu, no sertão de Pernambuco.

A crença de que a cobra coral morde pelas duas extremidades, ou seja, boca e cauda parece ser bastante difundida na região, pois fora registrada em outras ocasiões na cidade de Ouro Preto. Essa crença provavelmente surgiu através da observação de uma tática de defesa utilizada pelas cobras corais verdadeiras (Micrurus frontalis e Micrurus lemniscatus), chamada de engodo caudal. A defesa é feita por meio de fuga, mordedura ou movimentos erráticos do corpo, escondendo a cabeça sob ele e levantando a cauda (MARQUES; ETEROVICK, 2004; PONTES; ROCHA, 2008).

Uma crença que parece estar bastante difundida no povoado de Itatiaia é a de que a pessoa picada por uma serpente não deve contar a ninguém, senão o veneno espalha no corpo, levando a morte. Essa crença pode ter sua origem na recomendação correta em caso de acidentes ofídicos, veiculados por meio de campanhas oficiais de prevenção de acidentes do Governo Estadual de Minas Gerais, do Governo Federal e do SUS. Segundo essa recomendação, após o acidente ofídico, é importante que a pessoa vítima de envenenamento mantenha a calma e faça o mínimo de esforço possível até receber atendimento médico.

Uma hipótese para a origem dessa crença é de que, tendo sido esse conhecimento transmitido por tradição oral, a recomendação de “manter a pessoa em repouso”, pode ter se transformado ao longo do tempo, passando a ser transmitida como “manter a pessoa quieta”, ou seja, ficar calado, e com isso não contar a ninguém. Daí o surgimento da distorção de sentido, resultando em uma crença altamente prejudicial. Segundo Silva (2000), algumas crenças são baseadas na observação dos hábitos das serpentes e que de acordo com a cultura são interpretados e aumentados pela imaginação sendo algumas delas de fato, errôneas.

Conclusão

Os conhecimentos sobre a sazonalidade, locais de encontro e horário de atividade das serpentes dos moradores de Itatiaia foram compatíveis com as informações disponíveis na literatura científica. A crença de benzer foi utilizada no passado para tratar casos de acidentes ofídicos no povoado de Itatiaia, porém esta prática não ocorre atualmente no povoado, sendo freqüente a procura por auxílio médico em caso de acidentes. A maioria das crenças relacionadas às serpentes no povoado de Itatiaia foram comuns para outras regiões do Brasil. O perigo que os entrevistados associam aos ofídios, bem como o sentimento de repulsa e os mitos associados a estes animais também contribuiu para uma maior hostilidade e morte indiscriminada das serpentes. Nesse sentido, realização de programas de educação ambiental junto a população de Itatiaia poderão contribuir para a conscientização dos mesmos sobre à importância das serpentes e conservação dos recursos biológicos.

 

Agradecimentos

Aos moradores de Itatiaia pelo carinho e receptividade durante as entrevistas. Ao laboratório de Zoologia dos Vertebrados e aos amigos que ajudaram na aplicação dos questionários. À FAPEMIG e ao CNPQ pelo auxílio financeiro para o desenvolvimento do projeto.

 

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Ilustrações: Silvana Santos