Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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10/09/2018 (Nº 45) RODAS DE CONVERSA EM TORNO DA ÁGUA: REGISTROS DE MEMÓRIAS HÍDRICAS
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RODAS DE CONVERSA EM TORNO DA ÁGUA:

REGISTROS DE MEMÓRIAS HÍDRICAS

 

 

Ms.Isabel Korbes Scapini, professora do curso de Letras do Centro Universitário Univates, e mail iscapini@univates.br

Dra. Jane M. Mazzarino, docente do PPG Ambiente e Desenvolvimento do Centro Universitário Univates e mail janemazzarino@gmail.com

Cristiana Ruver, bacharel em História pelo Centro Universitário Univates, e mail crisruver@hotmail.com

 

 

 

 Resumo

Este artigo está baseado na análise de produções textuais resultantes de oficinas sobre recursos hídricos desenvolvidas durante o ano de 2011 e 2012, com professoras da rede pública da região do Vale do Taquari, Rio Grande do Sul, Brasil. Os textos foram produzidos em rodas de conversas sobre as memórias de cada professora em relação à água, caracterizando-os enquanto gênero e tipologia textual, identificando as matrizes culturais que mediaram  os escritos.

 

 

1.    Introdução

            As rodas de conversa são espaços de comunicação mediados pelas lógicas discursivas daqueles que interagem, aventurando-se a se abrirem para o outro a partir de um tema. São espaços de aproximação de si mesmo e para com o outro que potencializam aprendizagens e o compartilhamento de significados sobre o mundo. As rodas de conversa possibilitam, entre outros caminhos, a reflexão crítica e o aporte de elementos da memória de vivências daqueles que participam.

            Este artigo está baseado na análise de produções textuais resultantes de oficinas sobre recursos hídricos as quais foram desenvolvidas durante o ano de 2011 e 2012, com professoras da rede pública que atuam na região do Vale do Taquari, Rio Grande do Sul, Brasil. As oficinas ocorreram durante os cursos de Formação de Multiplicadores em Educação Ambiental que integram o projeto de extensão Comunicação para Educação Ambiental, do Centro Universitário Univates. Inicialmente será feita uma sucinta abordagem dos gêneros e tipologias textuais seguida da descrição da metodologia participativa utilizada durante as oficinas. Na sequência serão analisados trechos dos textos produzidos em rodas de conversas sobre as memórias de cada professora em relação à água, caracterizando-os enquanto gênero e tipologia textual e identificando as matrizes culturais que mediaram os escritos.

 

2.    Sobre textos: gêneros e tipologia

            Tanto o ato de ler ( construção social de sentidos ) como o de escrever constitui-se por uma situação de diálogo, em que autores e leitores interagem discursivamente para realizarem seus propósitos de comunicação (FONTANA et altri , 2009).

            Apesar das produções verbais, tanto escritas como orais, serem genericamente referidas como textos, essas modalidades de comunicação  são bastante diversificadas. Teóricos como Bakhtin e Bronckart (apud FONTANA et altri 2009 ) distinguem as produções textuais através dos “gêneros e modos de organização discursiva”. Dessa forma, dependendo do contexto de interação, dos propósitos comunicativos, dos interlocutores e das relações que existem entre eles, nossa fala e nossa escrita tomam um determinado formato denominado de gênero textual, cujos exemplos seriam um artigo, uma crônica, um romance, uma charge, um comentário esportivo, um editorial ou uma bula de remédios, entre outros.

            Além dos aspectos contextuais, que permitem agrupar os textos em distintos gêneros, como por exemplo: quem escreve, onde, quando, por que, para que escreve, também compõem as características de um determinado gênero aspectos como temáticas recorrentes, mecanismos linguísticos utilizados, nível de linguagem e formato textual.

Já o modo de organização discursiva ou tipologia textual diz respeito à maneira como a linguagem dessa fala ou escrita está organizada, ou seja, se a mensagem é veiculada através de narrativa, descrição, relato, diálogo ou argumentação/dissertação.

            O que diferencia um artigo científico de um conto literário, ou uma bula de remédios de um manual de instruções, a resenha de um filme de um documentário esportivo, um relato de uma experiência de um laudo médico, entre outros, é o contexto de sua produção mesclado a modos de organizar o discurso, a tipologia textual.  Por exemplo, a linguagem utilizada na bula de remédios é formal, valendo-se quase que exclusivamente de termos técnicos da medicina.  Este gênero apresenta uma formatação padronizada incluindo: composição da medicação, posologia, interações medicamentosas, efeitos colaterais, entre outros, bem como, um layout de texto específico, folhas de papel bastante finas e facilmente dobráveis, possibilitando que  o papel caiba na embalagem da medicação.

            Por outro lado, um comentário esportivo pode apresentar uma linguagem semiformal ou informal abrangendo frequentemente tom de humor ou sátira. A formatação do texto muda de acordo com o veículo de comunicação (programa de rádio, televisão, jornal, blog da internet e assim por diante).

 Mas, de acordo com a concepção de Marcuschi (2008) gênero e tipologia textual não compõem uma classificação dicotômica, pois elas se complementam. Além disso, os gêneros, em geral, apresentam mais de uma tipologia. Por exemplo, o gênero carta pode abarcar narrativas, descrições, relatos e argumentações. O mesmo acontece com uma reportagem jornalística, um conto ou um romance, nos quais os autores ora narram ora descrevem ou  relatam. Ainda segundo o lingüista, o estudo dos gêneros textuais constitui uma área multidisciplinar pois atenta para o funcionamento da língua, bem como para atividades culturais e sociais. Para o autor (2008, p.156) “toda vez que desejamos produzir uma ação linguística em situação real, recorremos a algum gênero textual”.

Desse modo, não se pode proceder a uma listagem finita de gêneros, pois, como entidades sócio-históricas e pela dinamicidade das ações humanas novos gêneros são criados frequentemente  tais como as conversas eletrônicas e  outras modalidades comunicacionais advindas com as inovações tecnológicas. Os tipos de texto, por seu lado, constituem um conjunto mais limitado visto que, como já foi mencionado,  narrativa, descrição, relato e argumentação se prestam a uma infinidade de gêneros.

Quanto à tipologia textual, segundo Fontana (2009), as principais características de cada tipo de texto determinam a narrativa, o relato, a descrição, a exposição ou a argumentação, os quais caracterizamos sinteticamente.

A narrativa é um modo de dizer as coisas comparado à contação de histórias fictícias, em que os personagens e fatos passam por mudanças progressivas de um estado inicial para um estado final. Conforme Barbosa e Amaral (apud FONTANA, 2009, p. 150) “Narrar é contar. Relacionar situações e personagens. Narrar é uma das atividades de linguagem mais presentes em nossa vida.” Evidentemente, as narrativas,  tão presentes no cotidiano, abarcam  histórias tanto fictícias quanto verídicas. 

Paul Hart (2007) acentua que a narrativa é uma prática tão antiga quanto o próprio homem e através do seu estudo é possível descobrir o modo pelo qual a humanidade experiencia o mundo.  Este autor argumenta que sendo a narrativa uma forma linguística singular para descrever a história da humanidade, ela se constitui objeto legítimo de pesquisa. Assim, narrar experiências, refletir sobre os fatos, expande a consciência, amplia a compreensão e pode encorajar um envolvimento maior com questões ambientais, uma formação de cidadãos mais críticos e conscientes do seu papel na transformação social.

Já o relato é um modo de organizar o discurso semelhante à narrativa, pois envolve a seleção de tempos verbais e construções sintáticas que apresentam evolução dos fatos no tempo, os quais aparecem de acordo com sua importância, pelas relações de causa e efeito ou por ordem cronológica dos acontecimentos, dependendo da finalidade do texto.

A descrição é uma forma de escrever que prioriza as características e os aspectos das coisas e das pessoas apresentadas no texto. O texto descritivo permite ao ouvinte ou leitor imaginar detalhadamente como é o cenário que envolve a história bem como seus personagens e ações.

No que concerne à exposição, este é um tipo textual em que podem aparecer   definições, classificações, citações, conceituações (modo expositivo) ou  incluir análises, comentários sobre teorias, previsões, especificações e conclusões (modo explicativo).

A argumentação é uma tipologia textual em que o autor defende uma posição  (a tese) valendo-se de evidências, provas, exemplos  (os argumentos) com a intenção de convencer ou persuadir o leitor ou ouvinte a chegar a determinadas conclusões.

 Esses modos de organização do discurso serviram de base para classificar os textos produzidos pelas professoras.

 

3.  Escrevendo na roda: um método de registro

Nas três oficinas sobre a água participaram quarenta e seis professoras estaduais que atuam nos municípios da 3ª Coordenação Regional de Educação. Os participantes ficavam sentados em círculo e a mediadora ficava em pé num primeiro momento. Ela solicitava inicialmente que  os presentes escrevessem todas as palavras/expressões que lhes vinham à mente quando pensassem em “água”, ou seja, todos os termos relacionados à “água” que pudessem lembrar.   Dizia a condutora da oficina: “Vamos fazer um brainstorm em torno do termo  água”. Discutia-se rapidamente o que significava brainstorm e então ela  escrevia “H²O”  no centro do quadro e informava que o grupo teria em torno de 10 minutos para anotações. Logo começavam a escrever livremente organizando as palavras a seu modo. Não houve indicação sobre um estilo de texto.

Decorrido este tempo, os participantes eram convidados a compartilhar  com o grupo as palavras ou expressões que haviam anotado. As manifestações se alternavam na roda. Cada participante dizia apenas uma das expressões por turno e a condutora  registrava as palavras no quadro, em torno do termo “H2O”. Isso impedia que apenas um  ou poucas professoras pudessem ler todas as suas anotações, deixando os outros calados por longo tempo, sem ter muito mais a acrescentar depois. Esse movimento “em roda” mostrou ser bastante motivador, fazendo o grupo todo se sentir engajado. As falas alternadas “em roda”  oportunizaram vários turnos para cada participante e cessavam somente quando a totalidade dos registros haviam sido sociabilizados. O quadro ficava repleto de escritos e os membros do grupo demonstraram surpresa com tantas representações evocadas pela “água”. Os escritos do quadro também eram copiados por um membro do grupo de pesquisa Práticas Ambientais e Redes Sociais para registro e análises.

Tendo uma “enxurrada” de termos evocados pela ”água” à sua frente, além das ideias sobre água que os participantes já haviam elaborado até este momento, estes eram convocados a redigir um relato sobre as vivências, memórias sobre a água. Para esta atividade a orientação era no sentido de que não se preocupassem com um padrão pré-estabelecido para esta redação; pelo contrário, se sentissem livres para uma manifestação individual bem espontânea.  Ao final da etapa de redação, ainda na roda, o grupo se alternava na leitura dos seus textos.

 

 

4.     Memórias hídricas

            As produções textuais resultantes eram relativamente semelhantes quanto aos padrões comunicativos, formatação e inserção sócio-histórica, enquadrando-se no gênero relato de vivência pessoal. Estes relatos se inserem nesse gênero com base no propósito da ação comunicativa: relatar memórias, usos e valores pessoais atrelados à água.  Os “escritores” o faziam a partir de um lugar e de um tempo parecidos, ou seja, os integrantes da roda eram professores da rede pública e é deste status/contexto que eles produziram os seus textos. Além desse ambiente discursivo similar, a faixa etária da maioria os posicionava a uma considerável distância da infância (em sua maioria tinham entre 30 e 50 anos) evidenciando saudosismo.

Esse momento era carregado de emoções antagônicas: por um lado a alegria nostálgica da época da infância na qual a água aparecia como elemento desencadeador das mais diversas brincadeiras e divertimentos; pelo outro, a tristeza e a angústia que emergiam das lembranças de perdas, tanto humanas quanto materiais, sofridas por morte de entes queridos, enchentes catastróficas, esgotamento de fontes naturais de água, etc.

         Minha vivência com a água me remete à infância. Havia um pequeno córrego no potreiro do meu pai onde eu e meus dois irmãos passávamos boa parte das tardes de verão. Meu irmão mais velho improvisava uma barragem com madeiras, e tínhamos ali, em poucos instantes, uma bela piscina para nossa diversão.  (M)

 

         A minha vivência com água: Muitas recordações e saudades, pois desde a infância, bebês, estamos em contato com este líquido precioso. Passei minha infância no interior, tomando banho de açude, [...] muito divertido e junto com meus irmãos, só oito. (L)

         Minha vivência com a água vem dos dias chuvosos no verão onde tomávamos gostosos banhos de chuva no pátio lá de casa eu e minha melhor amiga [...] Era muito divertido e relaxante. (ML)

 

            Quanto à sua tipologia, a formatação seguida nos escritos mesclava narrativas/relatos, algumas exposições, bem como, alguns textos apresentavam argumentações. Vejamos alguns exemplos de narrativas/relatos, que envolvem ações progressivas, com tempo verbal característico: o pretérito imperfeito:

         A água na nossa casa era rara, pois morávamos num lugar no alto onde tinha poucas nascentes.  Logo, para ter água para atender as necessidades básicas da minha família era armazenada em caixas e tocada até lá com motores. Então se economizava muito. A minha mãe fazia aproveitar toda a água. Quando chovia se colocava galões para pegar água da chuva e usar na limpeza e dar para os animais presos (porcos, galinhas, cachorros). Se lavava roupa longe de casa próximo a uma frente, onde tinha um belo tanque com telhado e cercado com tela. Eu adorava ir lá ouvir o barulho da água e lavar roupa. Quando se fala de rio, mar, piscina tenho muito medo, pois sempre fomos educados, que poderíamos se afogados. Minha mãe deixava tomar banho, era perigoso.(V)

 

         Havia um pequeno córrego no potreiro de me pai onde eu e meus irmãos passávamos boa parte das tarde de verão. Meu irmão mais velho improvisava uma barragem [...]. A este mesmo rio, levávamos nosso cão, para beber água, varias vezes seguidas fazendo de conta que era um boi e toda vez ele colaborava, bebendo mais um pouco. Também pescávamos peixes, com as quais a refeição era uma festa, pois a mães os preparava. E ainda, no entorno, encontrávamos argila, com a qual moldávamos objetos incríveis. (M)

 

O trecho abaixo se inscreve na tipologia exposição pois a participante faz um apanhado dos textos que haviam sido apresentados envolvendo algumas definições, comentários e  conclusões:

         Água, palavra sublime, líquido precioso que representa o início, meio e o fim da manutenção da vida... Ao longo do curso, ouvi relatos sobre a vivência de cada um com a água. Relatos que descreveram lembranças da infância, família, diversão, mas também angústia, tristeza e superação Histórias carregadas de emoção que nos fizeram revivê-las e descobrir no outro um pouco de cada um de nós. Água, que bem é esse que nos faz compartilhar, ceder, conviver e bem viver... bem comum, de uso individual e social, ameaçada na sua qualidade e quantidade. Os usos da água representam a maneira como o homem se relaciona com o meio ambiente, nas questões que dizem respeito a si próprio e ao próximo. Hoje representa a esperança, o reencontro e o renascer de novas ideias e atitudes. (R)

 

            A argumentação aparece nos trechos a seguir nos quais percebe-se a intenção dos autores em persuadir os  ouvintes sobre a importância da água:

Na vida do ser humano a água é um elemento indispensável pois precisamos dela para tudo. No verão, que é uma estação bem quente,  a água é super importante para nos refrescar e nos hidratar. Já no inverno a água também tem seu papel importante pois precisamos dela para cozinhar, para termos uma boa saúde e higiene. A água está presente em todos os momentos; ela pode nos fornecer momentos alegres e tristes. É também um elemento importantíssimo para o meio em que vivemos. (T)

 

A água para mim lembra o ciclo de entrada na fotossíntese, para a produção do oxigênio, essencial para a sobrevivência dos seres aeróbios, a manutenção das necessidades diárias para o metabolismo. Ao levantarmos precisamos fazer a higiene da face e bucal, descarga do vaso, café da manhã, lavar a louça, lavar a roupa, limpeza da casa, regar as plantas, etc. Ou seja, não existe sobrevivência sem a água. Água é vida.(L)

 

 As pessoas em roda sentiam-se muito à vontade para se manifestar porque entendiam que não há texto ou sentido “certo” ou “errado”. A formação docente através da prática de atividades de leitura e escrita em Roda é tema de estudos de Lima e Galiazzi (2010), as quais destacam o efeito potencializador no desenvolvimento de profissionais da docência desencadeado no espaço coletivo da roda. No estudo em questão o grupo de pesquisadores utiliza o gênero Diário construído coletivamente, o qual segundo as autoras (2010, p. 53) “constitui-se numa ferramenta que amplia o diálogo, propicia a interação além de possibilitar a explicitação das aprendizagens por meio da escrita”.

Desse modo, no caso das professoras escrevendo relatos sobre a vivência com a água, havia representações e memórias expressando sentimentos e sensações agradáveis, mas também sentimentos de tristeza e preocupação pela situação atual: tragédias climáticas, escassez de água, poluição e principalmente a falta de conscientização  da população em geral:

         Há mais ou menos um ano atrás ocorreu um fato, melhor dizendo, uma tragédia em Marques de Souza, a qual chocou o Estado do Rio Grande do Sul. Muitas pessoas [...] ficaram desabrigadas e perderam tudo em função de uma enchente ocorrida pelo transbordamento do rio Taquari.  Com este fato, pude observar que, por mais bela e necessária que a água seja, ela também é cruel e pode nos trazer muita dor e destruição, porém o que ninguém está querendo ver, é que somos nós, seres humanos que estamos mexendo com a mãe natureza e consequentemente tendo que arcar com as consequências.    [...] O arroio transbordava e a enchente levava a produção de soja e milho  na várzea causando prejuízos econômicos. Em épocas de seca íamos de jipe no arroio Forquetinha lavar roupas e água boa passava pelo filtro.

                                  

Além dos gêneros e tipos de texto, a análise dos escritos em seu conjunto levou à identificação de matrizes culturais, que se formam a partir de mediações e de formas de apropriação e pelos usos sociais. Para Mazzarino (2013, p. 96)

Entendemos as matrizes culturais como marcas incrustadas na experiência social dos sujeitos, que são ativadas nas interações sociais, embaralham-se com as novas experiências e os novos movimentos. São fazeres na vida do sujeito, sejam estes individuais ou coletivos. Estas matrizes culturais atualizam-se no (des)encontro cultural da interação social – comunicacional e/ou midiatizada – é quando se modificam, desterritorializam-se para reterritorializarem-se. As matrizes culturais se constituem por via das mediações sociais, e, ao mesmo tempo, são elas mesmas mediações para os fazeres sociais e na construção de novas identidades.

 

Identificamos oito matrizes culturais mediadoras das memórias hídricas:

a)    O cotidiano – lavar roupa, cozinhar, higiene, dar água aos animais, regar as plantas, saciar a sede, lavar a louça, preparar o café

b)    Valores morais – cuidar, preservar, conscientizar sobre a importância da água pra vida

c)    Dificuldades – quanto à quantidade, qualidade, custo e acesso à água no passado,  enchentes

d)    Fenômenos naturais – tempestades, enchentes, encontros das águas dos rios

e)    Tempo – dias de chuva, tardes da infância, a espera pelas férias na praia, o banho quando o filho era pequeno

f)      Sociabilidades – banhos de arroio, mar, piscinas, riachos, rios, acampamentos, pescarias e piqueniques com familiares, amigos e vizinhos

g)    Emoções – mergulhos, sustos, afogamentos, ver a lagoa e pensar já ter chegado ao mar, o medo da água, descobrir uma fonte

h)    Lúdico – brincadeiras com água e terra, guerrinhas de bexiga, escutar o barulho da água, diversões, festa, gritaria, comer granizo, saltar de cipó na água do rio.

 

 

As análises apontaram para três tipos de hibridismo: de sentidos, de tipologias e de tempos. Os sentidos híbridos surgem na mistura que os relatos fazem das diferentes matrizes culturais que estão memorizadas no corpo das professoras.

Quanto à tipologia, observamos, por exemplo, que os relatos de lembranças mesclavam-se com a linguagem argumentativa quando apontavam a necessidade de cuidado com a água e muitas vezes finalizavam com uma linguagem poética.

Quanto aos tempos, muitas professoras cruzaram um tempo passado, geralmente despreocupado, alegre, prazeroso, lúdico, de convivência familiar, eventualmente de necessidade, com um presente e um futuro que preocupa, remete à necessidade de mudança de valores e de ação coletiva para garantir a água em quantidade e qualidade. A percepção racional marca o relato sobre o presente e o futuro, enquanto a construção das memórias das vivências com os recursos hídricos na sua relação com o passado é marcada por uma percepção emocional.

 

           

Considerações finais

           

            O que se pôde depreender ao final da oficina é que as emoções, sentimentos suscitados no seu decorrer contagiaram os integrantes das rodas e os provocaram a seguir discutindo o tema em suas escolas, ao menos eram estas as manifestações das professoras no encerramento daquela etapa. Perceberam que poderiam fazer atividades similares com seus alunos: incentivá-los a refletir e escrever sobre suas memórias e suas percepções sobre a questão da água; e desta forma instigá-los a preservar, cuidar melhor dos recursos hídricos. Alguns, porém, destacaram que antes de desenvolver atividades com os alunos deveriam sensibilizar os seus pares, a escola como um todo, a ter um olhar diferente, uma maior consciência em relação à importância da água, seguido de mudança de comportamento relacionado ao uso da água e cuidados com o meio ambiente. Fica assim evidenciado que as ideias e emoções trabalhadas coletivamente, em roda, multiplicam possibilidades para a construção de saberes e fazeres em educação ambiental.

            Conforme Hart (2007) “os professores querem ouvir histórias de professores mais do que teorias de pesquisadores, e abordagens mais ativas, interativas e participantes têm mais possibilidade de levar ao crescimento e transformação política e intelectual”. Histórias pessoais são significativas e desencadeiam conexões neuroniais que auxiliam na construção do conhecimento. São carregadas de significado tanto para o relator quanto para os pares que as ouvem ou leem. Parece que relatar experiências e memórias é tarefa estimulante para docentes e pode ser uma metodologia mais eficaz para pensar criticamente, resgatar valores, rever atitudes, tanto dos professores quanto dos alunos, os quais, a partir disso, podem se sentir instigados a encetar ações para melhorar o ambiente e com isso sua história de vida.

            Barcelos (2003, p.44 e 45), retomando o pensamento de Octávio Paz,  diz “ homens e mulheres não veem o mundo, mas sim o sonham”.  Sonham um mundo com mais união e menos separação, mais diálogo e menos rupturas. Um mundo em que a prosa ceda parte do espaço para a poesia. E, segundo o autor, o lugar onde a prosa e a poesia precisam coexistir é o espaço da educação.  É o espaço em que apesar das ou por causa das pluralidades de ideias e constituições humanas, através do diálogo, da metamorfose, da alquimia, o desejo de unidade das comunidades e dos povos seja possível.  Um caminho para esta aproximação de homens e mulheres, na opinião de Paz,  é a literatura.

            Para ele, “ao mesmo tempo em que a literatura coloca homens e mulheres para fora de si, os faz regressarem ao seu ser primeiro, ao seu interior”.  Foi o que aconteceu com os professores ao produzirem seus textos: voltaram-se para dentro de si e regressaram a um tempo em que a realidade era diferente e esta  viagem permitiu a vários deles se darem conta que havia mais cuidado e proteção com os recursos naturais, outros valores eram cultivados. Além disso, como pontua Barcellos (2007, p. 73) “a escrita, como outras manifestações humanas, pode constituir-se em mais um território de aprendizagem”.

 

 

Referências

BARCELLOS, Valdo H. de Lima. Educação ambiental e literatura: a contribuição das ideias de Octávio Paz. In: Educação Ambiental e cidadania. Cenários brasileiros/Orgs. Fernando Oliveira Noal, Valdo Hermes de Lima Barcelos.Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003.

FONTANA, Niura Maria. Práticas de linguagem: gêneros discursivos e interação/Niura Maria Fontana, Neires Maria Soldatelli Paviani, Isabel Maria Paese Pressanto. Caxias do Sul, RS:Educs, 2009.

GALIAZZI, Maria do Carmo & LIMA, Cleiva. Formação de Educadores: O diário coletivo no movimento da roda. In: DELEVATI, Dionei Minuzzi...et al. (0rg.). Anais... do IV Seminário Estadual e VII Seminário Regional de Educação Ambiental: mobilizando multiplicadores em bacias hidrográficas. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2010.

HART, PAUL. Narrativa, conhecimento e metodologias emergentes na pesquisa em educação ambiental. In: Metodologias emergentes de pesquisa em educação ambiental/Orgs. Maria do Carmo Galiazzi, José Vicente de Freitas – 2.ed. Ijuí:Ed. Unijuí, 2007.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

MAZZARINO, Jane M. Tecelagens comunicacionais-midiáticas no movimento socioambiental. Lajeado: Ed. Univates, 2013.

 

Ilustrações: Silvana Santos