Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
Início Cadastre-se! Procurar Área de autores Contato Apresentação(4) Normas de Publicação(1) Dicas e Curiosidades(7) Reflexão(3) Para Sensibilizar(1) Dinâmicas e Recursos Pedagógicos(6) Dúvidas(4) Entrevistas(4) Saber do Fazer(1) Culinária(1) Arte e Ambiente(1) Divulgação de Eventos(4) O que fazer para melhorar o meio ambiente(3) Sugestões bibliográficas(1) Educação(1) Você sabia que...(2) Reportagem(3) Educação e temas emergentes(1) Ações e projetos inspiradores(25) O Eco das Vozes(1) Do Linear ao Complexo(1) A Natureza Inspira(1) Notícias(21)   |  Números  
Artigos
10/09/2018 (Nº 45) RESISTÊNCIAS E MODOS DE SUBJETIVIDADES DOS AGRICULTORES FAMILIARES: O PROCESSO DA SUBSTITUIÇÃO DA BATATICULTURA PELO FUMO EM SÃO LOURENÇO DO SUL-RS
Link permanente: http://www.revistaea.org/artigo.php?idartigo=1597 
  
A preocupação com a agricultura familiar vem crescendo no Brasil na última década

RESISTÊNCIAS E MODOS DE SUBJETIVIDADES DOS AGRICULTORES FAMILIARES: O PROCESSO DA SUBSTITUIÇÃO DA BATATICULTURA PELO FUMO EM SÃO LOURENÇO DO SUL-RS

 

 

 

Roberta do Espírito Santo Luzzardi

Engenheira Agrônoma e Educadora Ambiental. Doutora em Sistemas de Produção Agrícola Familiar pela Universidade Federal de Pelotas. Email: rluzzardi@gmail.com

 

APRESENTAÇÃO

 

O presente artigo procura analisar o processo de resistência e modos de subjetividade que abrange os agricultores familiares, a partir da especialização do fumo no Estado do Rio Grande do Sul e a substituição pela bataticultura.

A preocupação com a agricultura familiar vem crescendo no Brasil na última década. Primeiro devido a sua importância tendo em vista que a maioria dos estabelecimentos agrícolas são do tipo familiar, e por ser esse segmento indispensável para a produção de alimentos básicos. Soma-se a isso, o fato de empregar, mais de oitenta por cento da força de trabalho ocupada no meio rural, sendo esse segmento indispensável para a fixação da população rural no campo. Atualmente, a agricultura familiar vem passando por uma orientação progressiva do monocultivo e da especialização, negligenciando os cultivos de autoconsumo e vivido numa situação de insegurança alimentar onde grande parte da alimentação tem sido comprada e não produzida internamente na propriedade.

A diversificação de culturas aparece como a saída do agricultor familiar no enfrentamento das dificuldades econômicas, pois quando a comercialização de um produto não permite o mínimo necessário para o sustento familiar, ele possui alternativa para obtenção do sustento da família. Dentre as estratégias de produção que a unidade familiar utiliza para seu sustento, está a necessidade cada vez maior da produção de cultivos cuja comercialização esteja assegurada através das agroindústrias. Neste aspecto, a cultura do fumo aparece como a mais difundida entre pequenos e médios agricultores rurais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, onde é responsável pela ocupação de 650.000 pessoas no meio rural e gerou mais de dois milhões de empregos indiretos segundo a AFUBRA no ano de 2000.

O presente trabalho enfoca a questão da substituição da cultura da batata pelo fumo, numa região em que já foi a maior produtora de batata da América do Sul no século XX. Ao mesmo tempo em que adquiriu o “status” de atividade mais importante para a agricultura familiar em diversas regiões do sul do Brasil, o cultivo do fumo acompanhou o modelo modernizante e produziu impactos ambientais e sociais perversos nos agroecossistemas onde foi introduzido. Os efeitos econômicos positivos, de curto prazo, reflete-se em efeitos perversos com o passar do tempo como veremos. O fumo permitiu a manutenção de um nível de renda capaz de proporcionar a reprodução social familiar, ocupando a mão-de-obra, antes ociosa, especialmente enquanto as reservas de solo e florestas estavam sendo exploradas, sem que seus custos fossem computados nas despesas. Agricultores afirmam que “se fossem contabilizar a lenha e a mão-de-obra, não haveria lucro”, que “já tiveram problemas de intoxicação” e que “se descontar lenha e serviço a produção de fumo dá prejuízo” (ETGES, 1995).

Os impactos ambientais também não foram considerados na introdução do cultivo do fumo. A carga de agrotóxicos, nos primeiros anos do cultivo de fumo de estufa, era “muito alta.” O consumo de lenha e o cultivo continuado de solos com alta declividade causaram danos ambientais que provocaram reações de ambientalistas e da própria indústria fumageira com a incorporação de práticas menos agressivas ao ambiente. Moura (2002) ilustra a situação: “Na minha visão até os anos 80, 82, muito pouca preocupação havia quanto à reposição de mato, lenha e a parte da conservação do solo. O abuso na manipulação desses venenos, quando eles foram introduzidos realmente foi muito grande”.

A presente pesquisa justifica-se pelo fato que a cultura do fumo aparece como uma das estratégias de reprodução social adotadas pela agricultura familiar como forma de resistência no campo. O fumo apresenta comercialização garantida, além de as indústrias fumageiras financiarem a produção e os investimentos necessários ao processo produtivo. A necessidade de pequena área, associada à ocupação maciça de mão de obra, fazem desta cultura uma saída para as sérias dificuldades por que vêm passando a agricultura familiar. Deste modo, há uma progressiva desvinculação da agricultura familiar com os cultivos de autoconsumo o que fere diretamente o “ser agricultor”, ou seja, a subjetividade do agricultor familiar.

No intuito de se aliar e contribuir com o processo de renovação temática e teórico-conceitual, este projeto de pesquisa pretende oferecer uma análise sobre o tema da segurança alimentar e do desenvolvimento rural  em situações onde predomina a agricultura de tipo familiar, a partir de uma abordagem da filosofia da diferença.

A filosofia da Diferença faz parte de uma linha de pensamento que rompeu com as concepções filosóficas e científicas que eram tidas como verdadeiras. A partir de uma quebra com os paradigmas teleológicos nasce um novo modo de pensar que se caracteriza pela interdisciplinaridade e por novos modos de entender o que é sujeito e o que é objeto. A filosofia da Diferença entende que as ciências estão sempre se transformando e se relacionando, e que, por isso, tanto o sujeito quanto o objeto do conhecimento são construções, ou criações, do discurso cientifico de que fazem parte. Essa norma forma de pensar surge a partir do pensamento de Espinosa, Bergson e do perspectivismo de Nietzsche, e os filósofos de maior importância, dessa prática filosófica são Foucault, Deleuze, Guatarri, Lyotard, Derrida. Eles desenvolvem uma perspectiva filosófica que se interessa pela pluralidade, diversidade e singularidade, ao invés de uma filosofia baseada numa idéia universal e numa totalidade.

Há efetivamente uma produção de singularidades do ponto de vista do poder, como nos mostrou Foucault, que passa pelas disciplinas, as normas, os dispositivos de governo pela individualização, mas se trata sempre de uma produção finalizada na "submissão da subjetividade". As lutas das minorias atacam estas tecnologias do poder individualizante em seu próprio terreno, se abrindo à transversalidade e à dimensão coletiva das potências singulares. As lutas das minorias são travadas sobre o terreno do biopoder e de sua derrubada.

O destaque para o método de pesquisa que poderá ser utilizado também é a cartografia. Tem como objetivo dar expressão ao modo como as novas composições entre os campos implicam não apenas novos saberes, mas novas formas de produção desses saberes.

Enquanto método de pesquisa, a cartografia tem uma série de particularidades. É um método que não se aplica, mas se pratica. Quer dizer, não há um conjunto de passos abstratos, a priori, a serem aplicados a um objeto de estudo, pois a cartografia é um método em processo de criação, coerente com a processualidade daquilo que investiga.

Nesse sentido, trabalha-se com um modo de fazer pesquisa que se inventa enquanto se pesquisa, de acordo com as necessidades que surgem, de acordo com os movimentos do campo de estudo em questão.

O pensamento deleuziano e guattariano tenta um novo modo de olhar para o campo como uma forma de produzir conhecimento com o real (e não representações dele) tão legítimo, complexo e rigoroso, como podem ser o saber filosófico e o científico.

A localidade pesquisada é um importante núcleo de imigração pomerana do Rio Grande do Sul, formado por pequenas propriedades baseadas na mão-de-obra familiar. Acredita-se ser de extrema importância compreender como esses agricultores têm se organizado e o quanto preservam valores (suas maneiras de criar subjetividades) e formas de trabalho adquiridos de seus antepassados, e quais as estratégias de reprodução social foram estabelecidas ao longo do tempo.

É necessário que se tenham informações transformadas em conhecimentos sobre e para o desenvolvimento da região, tendo em vista que cada região possui uma dinâmica própria, com o que acabam adquirindo especificidades próprias que passam a exigir teorias, também próprias, para explicar e compreender o desenvolvimento do lugar.

A percepção dos recentes modos de produção no mercado globalizado remete à fragmentação e dispersão da cadeia produtiva, assim como do deslocamento desses fragmentos para regiões periféricas do planeta.

Conforme Araújo (2009), agir no mundo de forma diferenciada é um exercício de desterritorialização, estar em abertura às multiplicidades que consiste em transformar a atualidade livre; é manter o real em devir, em inabalável processo de criação da diferença. E é a partir desse novo devir que pretendo seguir minha pesquisa de doutorado no Programa de Pós-graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar da Universidade Federal de Pelotas.


REFERÊNCIAS

ARAUJO, Marcia Santiago de. Sonhos no devir das redes do Centro de Educação Ambiental, Ciências e Matemática. Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande, 2009. 171 f.

DELEUZE, Gilles. O atual e o virtual. In: ALLIEZ, Eric. Deleuze filosofia virtual. Trad. Heloisa B. S. Rocha. São Paulo: Ed. 34, 1996.

 

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 1 Trad. Aurélio Guerra Neto e Cecília Pinto Costa. Rio de Janeiro, RJ: Ed. 34, 1995.

 

ETGES, V. E. Sujeição e Resistência: os camponeses gaúchos e a indústria do fumo. Santa Cruz do Sul: Livraria e Editora da FISC, RS. 1991. 209p.

 

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

 

GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.

SANTOS, Boaventura de S. Um discurso sobre as ciências. 10ª ed. Porto,

Portugal: edições Afrontamento, 1998.

Ilustrações: Silvana Santos