Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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31/05/2013 (Nº 44) A DISCUSSÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E O EXEMPLO DAS SOCIEDADES AMAZÔNICAS NA CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO
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PROGRAMA TERRITÓRIOS DA CIDADANIA E O CONTEXTO AMAZÔNICO

 

A DISCUSSÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E O EXEMPLO DAS SOCIEDADES AMAZÔNICAS NA CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO

 

 

Daniel Carneiro Costa

Economista e Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia (PPGCASA), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente é Técnico-Administrativo em Educação da Universidade Federal do Amazonas. Endereço: Rua Comandante Henrique Bastos, n. 5.553, Condomínio Ariranhas, Bloco 24 A, apartamento 201, Bairro da Paz. CEP 69.049-070, Manaus-AM. Telefone: (92) 9466-9849. Email: daniel_costa1978@yahoo.com.br.

 

Sandro Haoxovell de Lira

Assistente Social e Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia (PPGCASA), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente é Técnico-Administrativo em Educação, Assistente Social, do Instituto de Saúde e Biotecnologia de Coari-AM (ISB), órgão vinculado a Universidade Federal do Amazonas. Endereço: Rua Saldanha Marinho, 793 – Casa 2, Centro. CEP 69.010-040, Manaus-AM. Fone: (92) 3213-4128/ (92) 8212-6521. E-mail: sandrohaoxovell@bol.com.br.

 

Alice Alves Menezes Ponce de Leão

Assistente Social e Mestre em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia (PPGSS) pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente é professora substituta do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas. Endereço: Rua 115, Quadra 220, Casa 31, Núcleo 11 – Cidade Nova 2. CEP 69.096-460, Manaus-AM. Fone: (092) 9275-9245 e (092) 8137-9277. Email: allicyponce@gmail.com.

 

 

 

RESUMO

Problematiza-se o desenvolvimento sustentável, considerando o desenfreado modo de acumulação capitalista que ameaça o estoque de recursos naturais e a sobrevivência humana. Apresenta-se o modus vivendi das sociedades camponesas amazônicas que se desenvolveram sem dependerem exclusivamente do mercado. Reivindicam-se novas formas de desenvolvimento social e econômico para uma vida sustentável.

Palavras-Chaves: Capitalismo; Desenvolvimento Econômico; Desenvolvimento Sustentável; Amazônia.

                                                          

Abstract

Problematizes up sustainable development, considering the rampant capitalist mode of accumulation that threatens the stock of natural resources and human survival. It presents the modus vivendi of Amazonian peasant societies that developed without relying exclusively market. They demand new forms of social and economic development for sustainable living.

Keywords: Capitalism; Economic Development; Sustainable Development; Amazon.

 

1. INTRODUÇÃO

 

A realidade econômica mundial das últimas décadas foi marcada por uma integração de mercados nunca antes experimentada e pela descentralização progressiva do processo produtivo de cunho capitalista. Este quadro vem se agravando com a hegemonia neoliberal desde o final da década de 1970 em escala planetária, resultando numa reorganização política e econômica sintonizada com o capital financeiro e as corporações transnacionais.

Esta nova realidade, sobretudo acerca das diretrizes que foram definidas pelo chamado “Consenso de Washington”, aprofundou a interdependência entre as economias nacionais, sobretudo dos países periféricos do capitalismo internacional. Este processo, em última análise, representou uma contra-reforma ao capitalismo reformado oriundo do pós-segunda guerra  (SACHS, 2004).

Comentando este processo, que inaugurou o declínio do Estado do Bem-Estar Social Europeu – o qual correspondeu a um bem-sucedido capitalismo de Estado, que teve um apogeu por cerca de trinos anos –, Sachs (2004, p. 29) tece a seguinte observação:

                                   

                                           A queda do muro de Berlim marcou o fim do socialismo real como paradigma de desenvolvimento e abriu o cenário para o evangelho neoliberal, que dominou a cena até o final dos anos 90. Porém, o paradigma neoliberal não cumpriu as suas promessas [...].

 

O avanço do neoliberalismo ganha contornos particulares na América Latina, por meio da desregulamentação das atividades econômicas, pelas privatizações da coisa pública, automação produtiva, dentre outros fatores, culminando na ampliação da exclusão social e no agravamento da questão social em face à desresponsabilização do Estado diante das mazelas produzidas pelo conflito entre capital e trabalho.

A política neoliberal fora prometida como indispensável pelos organismos financeiros internacionais para que os Estados Nacionais pudessem recuperar o crescimento econômico e, desta forma, promover o desenvolvimento de seus povos. Aliás, o receituário neoliberal, no afã de transformar todos os aspectos da vida social em mercadoria para fortalecer o desenvolvimento capitalista hegemônico, não considerou as peculiaridades referentes ao modo de vida das populações camponesas, sobretudo às dos países tropicais.

Estas populações camponesas, especialmente as amazônicas, apesar de, historicamente, terem sido vítimas de uma estrutura econômica que sempre lhes negou prioridade quanto ao acesso a financiamentos, tecnologia e mercado, bem como a bens e serviços público-sociais, desenvolveram em seus entornos naturais e com os ecossistemas em que se inserem uma relação de complementaridade baseada em sua cultura e modos de vida peculiares.

Nesse sentido, este estudo compõe-se de uma revisão bibliográfica de literatura especializada sobre as temáticas da sustentabilidade e desenvolvimento social e econômico, para analisar o modus vivendi das sociedades camponesas amazônicas que, historicamente, se desenvolveram sem dependerem do crescimento econômico capitalista. Estas sociedades desenvolveram em seu entorno ecológico formas de preservação/conservação dos recursos naturais, conforme seus sistemas simbólicos e necessidades materiais, se relacionando com as sociedades predominantemente urbanas através de práticas distintas da racionalidade consumista do mercado.

 

2. O desenvolvimento capitalista e a crise ambiental

 

Os níveis de degradação social e ambiental em escala global, fruto da razão tecnológica e econômica moderna, representam uma das mais importantes preocupações societárias no mundo. A gênese desse processo de preocupação se dá a partir de 1960 com a intencionalidade de promover novos estilos de desenvolvimento alicerçados em bases ambientais, de forma a promover um desenvolvimento sustentável que seja em longo prazo. Apesar dessas preocupações em escala global, não houve um consenso quanto às políticas e práticas adotadas e também quanto aos posicionamentos ideológicos e teóricos que sinalizassem para o desenvolvimento de novas alternativas de desenvolvimento social e econômico de forma sustentável, apresentando apenas algumas soluções societárias e tecnológicas para o enfrentamento da problemática em questão (LEFF, 2000).

Foi somente no início dos anos de 1970 que as discussões no âmbito da Organização das Nações Unidas ganharam maior visibilidade com a realização da Conferência de Estocolmo em 1972 (BURSZTYN e BURSZTYN, 2006). As discussões sobre desenvolvimento, alicerçadas em eventos internacionais promovidos pelas Nações Unidas sobre a sustentabilidade, a exemplo da Rio-92 e, recentemente, a Rio+20, representaram oportunidades para debater e enfrentar os desafios globais que decorrem dos modelos de desenvolvimento econômico e promovem degradação ambiental e desencadeiam inúmeras manifestações da questão social.

 

[...] o aquecimento produzido pela emissão maciça de gases que contribuem para o efeito estufa, com consequências deletérias para as condições de vida dos sete bilhões de seres humanos da espaçonave Terra, que serão nove a dez bilhões na segunda metade deste século (SACHS, 2012, p. 01).

 

Diante deste cenário mundial em que se contesta a manutenção dos atuais padrões produtivos e de consumo dos ditos países industrializados ou “desenvolvidos”, reivindica-se o surgimento de alternativas de desenvolvimento, efetivamente sustentáveis, baseadas em matrizes energéticas renováveis e limpas e não nos combustíveis do ciclo fóssil (carvão, petróleo e gás natural), pois estes emitem gases poluentes à atmosfera que vem contribuindo significativamente para as mudanças climáticas em escala global.

O modelo de desenvolvimento hegemônico, que prima pela acumulação capitalista para sua reprodução e ampliação, foi implantado em escala mundial numa tônica de homogeneização. Neste sentido, a diversidade sociocultural, os entornos naturais e as demais peculiaridades regionais e locais não são considerados devidamente.

Este processo aparenta não ter fim, tendo em vista que o objetivo da acumulação de mercado é sempre a busca incessante pelo lucro, apesar deste modelo de produção econômica sinalizar para a finitude das reservas ecológicas, uma vez que coloca em risco o estoque dos recursos naturais e das matérias-primas a serem usados na produção de mercadoria, geradora de valor de troca no âmbito da acumulação capitalista (MARX apud STAHEL, 1995).

Tanto a degradação ambiental quanto a exclusão social são duas conseqüências inerentes ao padrão de desenvolvimento adotado no interior do sistema capitalista. As evidências de saturação que este modelo possui são cada vez mais evidentes, o que impulsiona a urgência em se discutir novos parâmetros que apontem caminhos de desenvolvimento menos poluentes e degradantes e que promovam a inclusão social e econômica de forma democrática.

 

[...] esta preocupação baseia-se em evidências de um modelo insustentável de desenvolvimento, marcado principalmente por impactos ambientais globais, como as mudanças climáticas, a poluição de recursos hídricos e a perda de biodiversidade (FILHO et al, 2009, p. 123).

 

O ritmo de produção capitalista difere substancialmente do ritmo de recuperação e regeneração do ambiente natural. Este possui um processo de recuperação mais lento. Por sua vez, a produção capitalista requer um ritmo acelerado para atender os interesses do mercado (STAHEL, 1995). O aumento do consumo implica aumento da produção e de uso e exploração de recursos ecológicos, o que representa o desrespeito sistemático à capacidade de recuperação e auto-regulação natural. Este confronto de ritmos díspares é uma das explicações da elevada degradação ambiental por que passa o planeta, pondo em xeque as condições de sobrevivência humana e dos outros seres vivos.

O desenvolvimento deve contemplar as necessidades e os valores culturais e epistemológicos dos povos tradicionais (LEFF, 2005), e não os interesses de pequenos grupos e de elites dirigentes, que despolitizam as discussões da sustentabilidade inviabilizando sua realização (NASCIMENTO, 2012). Assim, o desenvolvimento sustentável vai se constituindo como alternativa e esperança de um mundo capaz de superar a encruzilhada histórica por que passa a Gaia, na acepção de Lovelock (2006).

Cabe destacar que os padrões de desenvolvimento impostos pelos países centrais do capitalismo têm no progresso científico a crença de que sua aplicação tecnológica será capaz de substituir a escassez de recursos naturais disponíveis e promover o crescimento econômico, encarregado, em última análise, de promover o desenvolvimento social. Esta fé tecnológica promoveu, de fato, o crescimento econômico e o desenvolvimento urbano-industrial dos países centrais (LEFF, 2000). Em contrapartida, demonstrou parco interesse em cuidar dos seus biomas e entornos naturais, inclusive de sua capacidade de recuperação, regulação e regeneração dos processos ecológicos.

Neste entendimento dominante, como explica Romeiro (2012, p. 10), “[...] a disponibilidade de Recursos Naturais (RN) pode ser uma restrição à expansão da economia [...]”. Por esta razão, dissemina-se a preocupação com os limites da tecnologia, o que faz necessária uma “governança” para a tecnologia, ou seja, uma administração da aplicação científica requer uma mudança de mentalidade, uma mudança cultural porque o problema não está na tecnologia, mas na maneira de concebê-la e empregá-la, pois esta não tem sido priorizada como instrumento a serviço da inclusão social, da redução das desigualdades sociais, nem tampouco está devidamente a serviço da redução de utilização de materiais e energia.

Na concepção de desenvolvimento capitalista, a tecnologia processa os recursos naturais como meros insumos, embora não seja capaz de substituir os fundamentais serviços ecossistêmicos que estes realizam gratuitamente.  É por esta razão que cientistas como Abramovay (2012, p. 22) afirmam que

 

[...] O século XXI exige governança da inovação tecnológica, sem dúvida: mas ele exige, sobretudo, governança dos limites no uso de materiais, de energia e nas emissões de gases de efeito estufa. E é impossível lidar com esses limites apenas por meio da inovação tecnológica, sem que se enfrentem as desigualdades que marcam a distribuição e o emprego desses recursos materiais, energéticos e bióticos na economia global e no interior dos diferentes países.

 

Além disso, a ampliação do consumo baseada nos atuais padrões de produção e consumismo é insustentável, pois acarretará maiores emissões de carbono e comprometimento da base dos recursos naturais ao ponto de seu esgotamento, razão pela qual, para Cechin e Pacini (2012, p. 129), o processo de “[...] combinação do crescimento da produção e do consumo global com a sustentabilidade ambiental é altamente incerta e pouco plausível”. Este processo pode resultar numa crise ambiental associada à social sem precedentes.

 

É certo que as atuais condições de vida estão ameaçadas, na hipótese de o aquecimento global vir a se confirmar. Contudo, a qualidade de vida dos que não a têm hoje e a das gerações futuras não estão ameaçadas apenas pelo provável aquecimento global. O modo de produção e de consumo vigentes traz em si ameaças que agem de forma independente desse evento, pois caso continuemos no ritmo de crescimento econômico dos últimos cem anos, teremos cerca de 120 milhões de pessoas por ano adentrando mercado de consumo. Serão mais de dois bilhões e meio em 2050. Há uma quase unanimidade hoje entre os cientistas de que os recursos naturais nãos serão suficientes para fornecer um modo de vida similar ao da classe média mundial a todos os novos ingressantes no mercado. No entanto, eles têm tanto direito quanto os que já participam do mercado consumidor (NASCIMENTO, 2012, p. 58).

 

O crescimento econômico, perseguido praticamente por todos os governos como a solução para gerar empregos e chegar ao desenvolvimento em todas as dimensões, tornou-se um meio e uma meta permanentes, ainda que não incorpore os crescentes custos ambientais gerados pelo conjunto destas atividades econômicas.

É generalizada a noção de que se necessita de crescimento econômico acelerado para atendimento das necessidades básicas da população. A insistência sobre essa necessidade tem tomado corpo ainda maior com a crise econômica mundial deflagrada em 2008 – cujo início teria sido exatamente uma bolha de crescimento (CAVALCANTI, 2012, p. 35).

 

As possibilidades de desenvolvimento no qual a diversidade cultural e a satisfação das necessidades básicas sejam superiores aos atuais padrões de produção e consumo levaram muitos pesquisadores a reconhecerem o modo de vida de muitos povos tradicionais que articulam sua organização social e parâmetros produtivos alternativos com a preservação/conservação ambiental.

Em que pesem os romantismos muitas vezes existentes entre aqueles que analisam tais realidades, subestimando as dificuldades e privações por que passam estes sujeitos, estas experiências merecem a devida consideração, pois são anteriores ao propósito do desenvolvimento tal como as sociedades industriais o concebem. Ademais, estas experiências conseguem obter um nível de bem-estar relacionado com os ambientes naturais em que se inserem sem a procura diuturna do crescimento econômico.

 

3. Alternativas ao desenvolvimento capitalista hegemônico: o caso da sustentabilidade camponesa amazônica

 

Ao se tratar das discussões acerca das alternativas de desenvolvimento sustentável, na tentativa de conciliar desenvolvimento econômico e social juntamente com a preservação da natureza, e considerando a experiência secular e mesmo milenar de povos que vivem numa relação de complementaridade com seus entornos ambientais, os países periféricos do sistema capitalista, sobretudo os localizados nas regiões tropicais, para muitos estudiosos possuem um excepcional potencial para promoverem bases que conduzam o florescer de outras vias de desenvolvimento (LEFF, 2000; SACHS, 2008).

Desenvolvimento que permita conciliar distribuição de renda, preservação/conservação ambiental e valorização cultural de seus povos. Como estes países, embora historicamente excluídos dos benefícios da riqueza mundial, conseguiram, até os dias atuais, assegurar a existência de expressiva parcela de seus biomas muito mais dos que os países centrais do capitalismo, eles detêm a oportunidade histórica de concretizar a conciliação do crescimento econômico com distribuição de renda e garantia de seus recursos naturais. Eles podem realizar tal combinação de modo sustentável, promovendo outra forma de desenvolvimento sustentável.

Tomando como referência a realidade amazônica, sua incompreensão por parte das autoridades oficiais e da lógica mercantil ao longo dos séculos foi responsável pela implementação, nesta região, de projetos governamentais completamente alheios à sua complexidade e particularidades socioculturais e ambientais.

Historicamente, essas empreitadas decorreram do processo de colonização que resultaram em conflitos sociais como massacres de povos indígenas, através de lutas entre estes e colonizadores e das missões religiosas, pela disseminação de doenças introduzidas pelo homem branco e escravização (SERRA e FERNÁNDEZ, 2004), desvalorização das culturas locais, devastação ambiental, bem como a precarização de serviços públicos qualitativos e oportunidades econômicas para as comunidades rurais amazônicas.

Este processo, que se iniciou no período colonial e se estende, em certo nível, até à atualidade, decorre da noção de que a Amazônia seria dotada de recursos naturais infinitos, inesgotáveis, com imenso vazio demográfico a ser preenchido por populações de outras regiões do Brasil que viriam não apenas habitar esta região como também “desenvolvê-la”. Seria a “integração” ao restante do país.

Por esta razão, no Século XX, sobretudo a partir dos anos 50, o Estado Brasileiro patrocinou a vinda de empresas e trabalhadores por meio de financiamentos, incentivos fiscais, concessão de terras, dentre outras iniciativas que visassem à atração de investimentos e mão-de-obra com o propósito de consolidar o modo de produção capitalista no contexto amazônico. A constituição da infraestrutura regional, portanto, vinculou-se à concentração econômica em determinadas localidades, a exemplo de Manaus, onde o surgimento da Zona Franca de Manaus, no final dos anos 1960, fez desta cidade um expressivo pólo atrativo migratório e de capitais que gerou uma urbanização altamente desordenada e a concentração da economia amazonense em sua capital.

É ilustrativa a observação feita por Pinto e Paula (2010, p. 04) acerca desta visão sobre a Amazônia

 

[...] Por muito tempo, o senso comum acreditou na tese de que a Amazônia era um bem ilimitado e permanentemente disponível à humanidade, e isto se refletiu nas políticas brasileiras desde os tempos coloniais com a exploração das riquezas naturais da região e com o regime de apresamento da mão de obra que iria extrair produtos. A partir da segunda metade do século XX, por razões de ordem geopolítica ligadas a uma nova preocupação com a chamada “integração nacional”, criada no sentido de promover o desenvolvimento econômico, houve grande investida na Amazônia patrocinada pelo Estado brasileiro [...].

 

Cabe destacar que as sociedades camponesas amazônicas modificam seu entorno natural com suas práticas cotidianas. E, na mesma medida, são modificadas por ele. Estabelece-se, portanto, uma relação dialética em que a interdependência é um aspecto essencial para compreender a profundidade desta relação. Neste sentido, tanto a economia quanto a cultura são fundamentais para este relacionamento que tais sociedades desenvolveram com o ambiente natural que as circunscreve. Nos dizeres de Leff (2000, p. 113)

 

[...] as práticas produtivas de cada formação social, fundadas na simbolização de seu ambiente, nas suas crenças religiosas e no significado social dos recursos, geraram diversas formas de percepção e apropriação, regras sociais de acesso, práticas de manejo dos ecossistemas e padrões culturais de uso e consumo dos recursos [...]. 

 

O campesinato amazônico não está submetido à lógica da acumulação capitalista integralmente, pois se assim fosse sua produção se basearia em produtividades crescentes para atender as demandas de mercado e à expansão do próprio capital. Nesse sentido, para Fraxe (2011), o campesinato se situa entre sociedades pré-capitalistas e sociedades plenamente incorporadas pelo modo de produção capitalista.

Os camponeses amazônidas produzem, prioritariamente, para satisfazer as necessidades de sua unidade de consumo, seu meio familiar. “O trabalho camponês é limitado pelo objetivo fundamental de satisfazer as suas necessidades familiares” (FRAXE, 2011, p. 29). E são também camponeses porque são donos de seus próprios meios de produção. Vendem sua força de trabalho eventualmente, quando precisam complementar sua renda para suprir necessidades não satisfeitas com a produção familiar. Estas populações produzem para sua subsistência e comercializam ou não o excedente. Porém, elas possuem um tempo de produção econômico menos acelerado que o tempo de produção capitalista e mais próximo do tempo natural de reprodução dos recursos naturais.

Neste sentido, para Laraia (1999) deve-se considerar para um entendimento adequado deste processo que a coerência do comportamento social somente pode ocorrer dentro da vivência do próprio sistema no qual se insere dada sociedade.

Obviamente, o modo de vida dos camponeses amazônicos não é isolado da vida urbana ou inerte perante a complexidade que a modernidade trouxe em todas as suas dimensões. Portanto, não se tratam de sociedades “apartadas” do modo de produção capitalista, mas que estabelecem relações diferenciadas com o modo de consumo e produção.  Neste entendimento, Fraxe et al (2009, p. 33) afirmam que

 

A ideia de que esses povos sustentam um modo de vida estritamente tradicional não deve ser considerada, tal como se vivessem de modo estático e congelado. Suas manifestações culturais e sociais se expandem pelo mundo urbano e vice-versa, assimilando algumas práticas e rejeitando outras.

 

A cultura, neste contexto, assume uma dimensão fundamental no modo de vida do camponês amazônico, à medida que ela media sua relação com as atividades que desenvolve. Se o ser amazônico não é refém das exigências de mercado, ele também não deixa de ir ao mercado para adquirir mercadorias e serviços que não pode produzir.

 A própria manutenção de sua unidade de produção por meio de sistemas agroflorestais é uma demonstração contundente de que ele prima por um conjunto de estratégias produtivas e criadoras para poder sobreviver e comercializar seu excedente em diferentes épocas do ano, quando os ciclos naturais, sobretudo os relativos ao hidrológico (enchente, cheia, secante e seca), impõe restrições que conduzem a família camponesa a dispor de alternativas que viabilizem a satisfação de suas necessidades. “Neste meio ambiente terra/água, reciprocamente condicionado, constantemente submetido a fortes desgastes, o homem e a natureza desenvolvem os mais variados comportamentos adaptativos” (FRAXE, 2011, p. 26). É neste contexto que o camponês amazônico, mesmo sem a assistência estatal devida por meio de políticas públicas adequadas às suas peculiaridades, à custa de muitas dificuldades e privações, sobrevive e se reproduz material e imaterialmente no interior da Amazônia.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A existência das sociedades camponesas amazônicas, bem como de outras sociedades não completamente assimiladas pelo modo de produção capitalista, é a demonstração da viabilidade da construção social do desenvolvimento mediada por outros fatores que não apenas a economia, como a cultura.

Obviamente, tal existência não implica afirmar que as sociedades urbano-industriais devam retornar à “ruralidade” para serem sustentáveis. Implica afirmar, na verdade, que a sustentabilidade pode ser materializada se houver a superação da procura desenfreada pelo crescimento econômico por outros meios, como a mediação cultural e a limitação da atividade econômica a patamares compatíveis com a preservação/conservação das atividades ecológicas. Outrossim, a encruzilhada histórica em que adentra a experiência humana por causa das mudanças climáticas e crise socioambiental global parece progressivamente impor aos habitantes da nave Terra ou da Gaia a urgente e necessária adoção de paradigmas de desenvolvimentos alternativos.

Pensar formas alternativas de desenvolvimento que conciliem progresso econômico e social aliados ao respeito à natureza supõem a construção de uma nova racionalidade, o que transcende a discussão para além da utilização responsável dos recursos naturais de forma viável, sóbria e duradoura, mas que leve em consideração, sobretudo, a preocupação com as gerações atuais e futuras para a diminuição dos índices de degradação ambiental, de pobreza e exclusão social.

 

 

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Ilustrações: Silvana Santos