Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Entrevistas
31/05/2013 (Nº 44) ENTREVISTA COM HUGO ACAUÃ SOBRE O PROJETO ” ÍNDIOS NA ESCOLA” COM BASE NA LEI FEDERAL Nº 11.645
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APRESENTAÇÃO DA ENTREVISTA COM HUGO ACAUÃ SOBRE O PROJETO ” ÍNDIOS NA ESCOLA” COM BASE NA  LEI FEDERAL Nº 11.645

A questão indígena ter se tornado parte do que deve ser trabalhado com as crianças, na escola, desde pequenas, a partir da formulação da Lei Federal Nº 11.645, de 10 de março de 2008, é um aspecto bem positivo para o aprendizado e consciência da criança sobre a diversidade humana. Porém,  pouquíssimas pessoas da área da educação têm conhecimento desta lei e da sua importância, então, para desvendar um tesouro a ser agregado ao tecido do sistema educacional, a vida indígena integra diretrizes educacionais importantes,  acordadas após muito estudo e detalhamento. Tive a honra de conhecer indígenas Pataxó, que hoje são pessoas adaptadas à urbanidade, mas que não perderam as suas raízes, pelo contrário, pretendem divulgá-las e difundi-las para esclarecer a importância dos povos indígenas, originais senhores desta terra chamada Brasil. Foi assim que cheguei ao projeto Índios na Escola, que será esmiuçado nesta entrevista com Hugo Acauã, que é um dos coordenadores do Projeto, junto com Kamayurá Pataxó e Patxiá Pataxó, ambos da Aldeia Velha (Pataxí Makiame), em Porto Seguro, BA. Hugo não é nascido de aldeia, mas é um cidadão que possui suas raízes descendentes indígenas, por parte de suas avós, materna e paterna. Há mais de 15 anos vem dedicando seus estudos as culturas indígenas-xamânicas e foi na Aldeia Maracanã, antes Instituto Tamoio, no Rio de Janeiro, que Hugo conheceu Kamayurá Pataxó e com ele trabalha há aproximadamente cinco anos.

Bere - Olá, Hugo! Para nós é uma imensa alegria tê-lo como entrevistado dessa edição da Educação Ambiental em Ação. Vamos às perguntas: Como você iniciou o projeto “Indios na Escola”?

Hugo – Olá, Bere! Antes de tudo gostaria de agradecer-te pela honra e oportunidade da entrevista, bem como, parabenizá-la pela iniciativa do periódico e grande contribuição para nossa causa indígena. Há mais de quinze anos procuro me dedicar sempre que posso aos estudos e apoio às causas das culturas indígenas-xamânicas. Conheci Kamayurá Pataxó aproximadamente há uns 6 anos atrás, no antigo Museu do Índio, situado no bairro Maracanã, Capital do Rio de Janeiro. Na época Instituto Tamoio, após, Aldeia Maracanã. Daí tivemos uma noite em que muito conversamos sobre a importância deste projeto e o quanto deveríamos investir no mesmo, pois este já se encontrava desacreditado e decidido até mesmo a voltar para sua Aldeia, devido a falta de valorização e o preconceito que ainda presenciamos em nossa cultura sobre as questões indígenas. Retomamos a força e o espírito de luta, e a partir daí o projeto toma seu rumo e estabelece suas bases para a propagação desta cultura originária, agora obrigatória nos currículos dos ensinos fundamentais e médios, nos estabelecimentos de ensino público ou privado de nosso país. Funcionamos há uns cinco anos com este, mas com muitas dificuldades.  

Bere - Quais são os objetivos do projeto?

Hugo – Visamos estreitar mais os laços entre estes povos originários, que formam o “berço” primeiro de nossa raiz e nação brasílica, antes Pindorama, com os dos nascidos em grandes centros urbanos e que por desinformação de nossa cultura e natural preconceito, não se reconhece ou “rompeu este elo” em que o mesmo encontra-se inserido em seu DNA, pois difícil é aquele que não tenha descendência ou algum grau de parentesco com algum indígena, em algum momento na história de seus antepassados e até hoje, naturalmente presente em nossa cultura, através da terra física e imaterial, das palavras, dos hábitos, alimentos, etc. Entendo ser possível um positivo intercâmbio cultural, sem que os indígenas percam suas raízes e desvalorizem suas culturas em detrimento da nossa, mas aproveitem o que entenderem de positivo para se fortalecerem. Estes precisavam mesmo desta oportunidade, agora pela obrigatoriedade da própria Lei, quebrar alguns dos paradigmas e até equívocos históricos que ficaram no tempo e que criaram estigmas, tabus a serem superados por nossa sociedade em relação aos nativos de nosso país. A História foi e ainda é contada por quem colonizou nosso país, não foi dita por estes que muito sofreram, que teve suas terras invadidas, até hoje, direitos e culturas erradicadas e usurpadas. Acho que está na hora de tentar reparar tudo isso e entendermos que esse é o tempo, de dar oportunidade aos indígenas contarem sua história e dizerem de fato quem são, pois, em se tratando de índios, não podemos continuar no erro de homogenizar e continuar alimentando padrões estereotipados estabelecidos, erroneamente, por nossa cultura, como se um fosse ou respondesse por todos, mas devemos falar em “culturas indígenas”, e que nosso país foi tomado por um golpe e não “descoberto”, como se conta nos livros didáticos, pois muito antes dos portugueses aqui aportarem, já há muito existia-se a presença de milhões de nativos neste país e continente. Como descobrir algo que já era descoberto?! Paralelamente, de “braços dados”, cresce vertiginosamente a necessidade de também aprendermos a olhar e valorizar a natureza, pois dela somos, dependemos e fazemos parte, e os indígenas também muito têm a contribuir com nossa sociedade em relação a esta temática. Enfim, precisamos deixar um legado maior, mais transparente e assertivo para nossas futuras gerações. Nossas crianças e jovens de hoje são os futuros dirigentes deste país no amanhã, e o momento é agora!  

Bere - Neste percurso, quantas escolas vocês já alcançaram?

Hugo – Vamos caminhando de forma muito gradual, com nenhum incentivo público ou privado ao nosso projeto, e isso dificulta muito a nossa divulgação e visibilidade. Em geral, somos nós mesmos quem arcamos com todos os custos, sem contar que aqui em nosso país as leis “demoram a saírem do papel” e a terem eficácia na prática, pois ainda não há investimento, apoio sólido e consistente para aplicação da Lei 11.645/08. Precisamos arar a terra e preparar o solo para disseminar novas sementes e olhares para este fato, em nossa cultura. Muitos dos nossos professores e educadores ainda carecem de formação e preparo para falar sobre a matéria, porque não foram preparados pra isso, quiçá nossos alunos, futuros e plenos cidadãos deste país. Ainda assim, já somamos pouco mais de dez instituições que já apresentamos nosso trabalho e graças a seriedade do mesmo, muitas destas nos procuram novamente. Contamos somente com algumas contribuições que às vezes conseguimos de alguns colégios que muito solidariamente vem reconhecendo e valorizando nosso trabalho, e com muito carinho procuram nos incentivar. A educação é a porta para nossa transformação pessoal e social, é preciso investir nela, em nossas escolas e em nossos professores.

Bere – E nas escolas, quando estão em ação, qual é a reação das crianças?

Hugo – Nossa, ao falarmos nelas, não tem como não esboçar um sorriso no rosto e a alegria no coração, pois estas ficam sempre encantadas quando se deparam com um destes em sua própria escola. Se alegram, perguntam se é “índio de verdade mesmo”, até porque não é comum nos deparamos com um destes aqui no Rio e misto cultural já existente, pois foram dizimados pelas guerras de dominação históricas, somente de vez em quando, por televisão ou internet. Querem tocar, brincar com os apitos e vislumbram todos os tipos de adornos e trajes da cultura destes. Prestam atenção a tudo e participam com imensa alegria, depois dançam conosco numa imensa roda, as vezes até conjuntamente como os pais, inspetores, diretores, professores e pedagogos, é uma só alegria! É extremamente gratificante vermos isso, quando novos olhares adentram a esta cultura que muito fora retaliada e deturpada pela nossa em que ainda vivemos, mas a luz no horizonte já aponta pra novos rumos e isso que é importante.

Bere - E qual é a reação dos professores?

Hugo – A reação dos professores, em geral, não fica muito distante a das crianças, embora naturalmente mais contidos pela maturidade e profissionalismo, mas prestando muita atenção na fala dos índios e tudo o que ali está sendo apresentado. Muitos geralmente ficam surpresos com certas informações que muitas vezes destoam com a que foi estabelecida em nossa cultura e senso comum. Muitos aprendem e também muito aprendemos com estes. É uma oportunidade única de grande intercâmbio pedagógico e sociocultural, uma grande oportunidade de crescimento mútuo, de rumos diferenciados em nossa história e cultura brasileira, com mais humanidade, valorização da natureza e respeito às diversidades.  

Bere- Realmente esse intercâmbio é maravilhoso, é o aprendizado na prática, envolvendo todos os sentidos e, principalmente, emocionando. Muito lindo! E você percebe modificação no modo das crianças perceberem os indígenas, após o trabalho diretamente na escola?

Hugo – Naturalmente o primeiro impacto é a emoção de estar na presença de um índio, quando se trata de crianças ainda em tenra idade, em processo de alfabetização, pois não podemos exigir demais destas elaborações muito complexas e racionais, pois tudo ainda é muito lúdico em sua mente, mas percebemos alguns sinais que já denotam alguma diferença, sem contar que a informação fica ali contida no subconsciente da criança, também junto aos educadores, pais e professores, pois todo crescimento e formação de um ser deverá ser sempre gradual e requer muita dedicação. Eles passam o dia todo alegres com a presença dos índios e falando destes à todos. Quando os pais chegam para levá-los de volta pra casa, logo falam destes, o que mais ficou despertou sua atenção e ficara registrado em sua memória, sem contar quando algum artesanato é adquirido. Pedem aos pais, às vezes, “um último momento” naquele dia com os índios, uma foto para posteridade. Os pais e todo colégio, professores e diretores, muito nos agradecem, ficam felizes e deslumbrados com o que ali acontecera.

Bere- Quais são suas maiores dificuldades para a aplicação do projeto?

Hugo – Nossa maior dificuldade é o desconhecimento e a falta de valorização de nossa história, de nossas raízes e cultura. Da nossa degradada educação, do desrespeito e preconceito instaurado na maioria das mentes formatadas pelo sistema em que fomos educados. A falta de incentivo vem de tudo isso, de nos percebermos distintos e não parte de uma grande e única família planetária, a raça humana. Todos somos filhos de um único Deus, seja este representado pelo nome em que mais nos afinamos, independente de nossa cultura, região e epiderme.

Bere- E o que mais os motiva quando estão fazendo este trabalho?

Hugo – É a esperança que vemos nos olhos e sorriso de uma criança, na valorização e reconhecimento de nossos professores e educadores de nosso país!

Bere- Como vocês se adaptam a vida nas cidades, já que percorrem cidades apresentando o projeto? Como funciona a rotina de vocês, nas cidades?

Hugo – A experiência na prática vai nos dando a direção a ser seguida, sempre buscando as necessárias adequações a cada circunstância e diferenciadas necessidades. Cada trabalho é um trabalho com suas especificidades e particularidades pertinentes. Conhecer e viver cada momento deste é o arsenal constante de experiências acumuladas. É sempre uma boa e gratificante “aventura”, de novos contatos, crescimento e amizades. Levamos sempre algo pra nós e deixamos sempre muito de nós.

Bere- Que lindo isso, Hugo, e quando estão fora da tribo, é possível realizar os rituais diários que os indígenas costumam realizar nas reservas?

Hugo – Estar e conviver nas grandes cidades e centros urbanos é muito gratificante, de certa forma, mas requer grande desafio e adequações, pois é difícil manter todos os costumes vividos na Aldeia. Sempre há um natural “choque cultural” e isso pode ser até muito desgastante, mas sempre trabalhamos com o intuito de não nos perdemos do caminho original, das tradições e de nosso foco, portanto, sempre provocamos este momento para mantermos constantemente acessa a luz dos rituais em nós, a linguagem, os costumes, comidas e danças típicas, no caso dos Pataxó da Bahia, o Toré Awê.

Bere- Com a sua experiência e convívio com diferentes tipos de cultura, qual é o seu maior aprendizado?

Hugo – Como é linda e perfeita a criação, a pluralidade existencial e cultural de nossa natureza divina. Como vejo a parte indígena que reside em mim a todo instante viva, principalmente quando com estes estou, o quanto aprendo com eles e o quanto os mesmos têm a nos acrescentar, embora muito lamente àqueles que infelizmente já foram “contaminados” pelos mais de quinhentos anos de contato e imposições de nossa cultura e que já se perderam do caminho original de suas tradições. Creio na unidade da diversidade e que um dia estes retornem à casa!  

Bere- Se alguma Escola quer que vocês apliquem o projeto, como elas devem proceder? 

Hugo – É simples, nossos contatos são: (21) 9753 0378 Vivo e (21) 7964 4496 Tim. E-mail: espíritopataxo@yahoo.com.br e nosso blog: www.indiosnaescolaespiritopataxo.blogspot.com

Bere- Vocês têm apoio do governo ou patrocínio para desenvolver o projeto? 

Hugo – Como já dito antes, não temos nenhum tipo de incentivo para desenvolver e manter nosso projeto, senão pelos nossos próprios meios ou apoio de algumas escolas, as vezes até mesmo da própria Aldeia, mas cremos que este cenário mudará num futuro próximo, pois estamos numa grande transição de ciclo.  

Bere- O que é mais gratificante ao realizar este trabalho? 

Hugo – Sentir que vou cumprindo minha missão junto destes parentes-irmãos indígenas, resgatando e reconectando-me às minhas origens, como uma formiguinha, de forma simples e singela, mas com muito amor e esperança no coração. Este é um trabalho da alma, do ser, do coração, que o dinheiro não traz explicação!  

Bere- Deixe uma mensagem para os leitores da revista Educação Ambiental em Ação: 

Hugo – Mais uma vez gostaria de agradecer e parabenizar pelo espaço e oportunidade de “ouvirem nossa voz” e de darem a oportunidade de crescermos um pouco mais, mutuamente. Que sejam vocês nossas sãs sementes do amanhã a germinarem os bons frutos para nossas futuras gerações, com mais respeito as nossas raízes, à diversidade e a nossa Mãe-Natureza! 

A você, Bere, e a todos os leitores deixo aqui na língua Patxiohã, dos índios Pataxó:

!Dxá’á Karnetú Tupã-Niamisú mãtxó

(Que nosso Deus Tupã-Jesus lhe abençoe!) 

Bere – Hugo, sou eu que te agradeço por tua disponibilidade em compartilhar essa experiência, além de exemplar, maravilhosa, por dar vez e voz aos povos indígenas a partir deste projeto de levar essa cultura às escolas. Desejo, do fundo do coração, que este programa seja reconhecido como merece pelo grande valor que ele encerra, e desejo que se expanda para todas as escolas. As crianças merecem receber o presente de conhecer seus irmãos indígenas, parabéns e votos de muito sucesso sempre. Muito obrigada, Bere Adams e equipe da revista Educação Ambiental em Ação.

 

Ilustrações: Silvana Santos