Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Arte e Ambiente
10/09/2018 (Nº 43) ESTÉTICAS DA FÉ NO EXTREMO SUL DO BRASIL
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Estéticas da Fé no extremo sul do Brasil.

 

 

Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

Amanda Ribeiro Corrêa[ii]

Daniela Pereira dos Santos[iii]

 

 

 

RESUMO: O artigo discute algumas questões envolvendo manifestações de fé, relacionadas ao caráter sagrado da água, e suas implicações, a partir do pensamento de Gaston Bachelard.

 

 

Os primeiros documentos escritos da humanidade, obras dos sumérios, são códigos que regulam o uso da água. As civilizações antigas reconheciam na água, além do caráter sagrado que a ela era conferido, um fator econômico preponderante, por permitir o transporte de produtos e matérias primas, promovendo a expansão política, econômica e social (LIEBMANN, 1979).

E a relação da humanidade com a água em todos os sentidos continuou sendo marcante, tanto que em virtude da influência grega, as cidades romanas também eram planejadas levando-se em consideração o suprimento de água potável e a eliminação dos esgotos. As ruas dessas cidades eram regulares e construídas em ângulo reto, oferecendo a possibilidade de melhor aeração, protegendo do mosquito da malária e proporcionando boa visão geral sobre toda a cidade. A limpeza e a conservação das ruas eram uma prioridade, demonstrando a preocupação dos governantes com a saúde humana, afirma Liebmann.

E de acordo com o autor, foi a consciência social da necessidade de preservação da qualidade dos mananciais - para o suprimento de uma população urbana em crescimento - e o caráter mítico da água, os fatores que favoreceram a preservação do meio ambiente na Antiguidade. Entretanto, ele também nos diz que embora as crenças, as noções técnicas e os conhecimentos sobre as ciências naturais, a visão antropocêntrica dessa cultura restringiu as preocupações ambientais ao espaço físico das cidades, esquecendo-se do entorno e desconsiderando as inter-relações.

Os estudos de Liebmann (1997) destacam as intrínsecas relações da humanidade com a água, permeadas por manifestações de religiosidades que confirmam o seu caráter sagrado. E foi a reflexão estética e filosófica sobre esse tema, o que motivou os pesquisadores do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq) a acompanhar as homenagens que aconteceram em São José do Norte (RS), dedicadas à Iemanjá e à Nossa Senhora dos Navegantes, em fevereiro de 2013. 

A nossa viagem de estudos teve como objetivo fotografar os ritos religiosos ocorridos na cidade, para posterior discussão e análise a partir das ideias da Gaston Bachelard sobre a água como um elemento embalador da imaginação (BACHELAR, 1997, p.136). Permanecemos lá, hospedados na Praia do Mar Grosso, registrando e refletindo sobre manifestações que reúnem as celebrações religiosas e seus rituais, à vida produtiva de uma cidade banhada pelo oceano Atlântico e pela Laguna dos Patos, no extremo sul brasileiro.

 

Figura 1: Daniela dos Santos

Sem título.

Fotografia analógica, 2013.

 

As festas alusivas a Iemanjá (Figura 1) e a Nossa Senhora dos Navegantes (Figura 2) são ritualísticas, oriundas de filosofias religiosas distintas, celebradas anualmente entre os dias 01 e 02 de fevereiro. E essas comemorações no município de São José do Norte são especiais. Elas reúnem as celebrações noturnas em homenagem à Rainha do Mar, que acontecem na Praia, às procissões, terrestre e marítima, realizadas na tarde do dia 2, em homenagem a Nossa Senhora (Figura 2).

 

Figura 2: Daniela dos Santos

Sem título.

Fotografia analógica, câmera lata de sardinha, 2013.

 

O Mar Grosso é um lugar pacato a beira-mar, de poucos e silenciosos habitantes, caracterizado pelo interesse de assegurar uma “cultura do isolamento”, como um morador da região manifestou ao se colocar contrário a algumas condutas de imigrantes trazidos por oportunidades de emprego no entorno da localidade. Durante os dias que estivemos transitando por este território de particularidades atemporais - pois parece resistir às tendências dinâmicas de nosso tempo - percebemos que a festa marca o dia de maior movimentação na região durante todo ano.

Na noite do dia 01 chegaram alguns ônibus trazendo os umbandistas que residem na região, além da comunidade nortense que participa de forma mais contemplativa, circulando entre as tendas dos centros espíritas até o amanhecer. A festividade teve início com a chegada da imagem de Iemanjá pela avenida principal, que seguiu em procissão, sendo transportada dentro de uma pequena embarcação (Figura 3).

 

Figura 3: Amanda Corrêa

Sem título.

Fotografia digital, 2013.

 

Figura 4: Amanda Corrêa

Sem título.

Fotografia digital, 2013.

 

A pequena procissão deu início ao desenvolvimento dos rituais na beira da praia, onde cada centro limitou o seu espaço para que os integrantes se manifestem, integrando cantos e danças dedicadas a Iemanjá (Figuras 4).

A festa é caracterizada pela feminilidade presente na figura da divindade umbandista e do imaginário que a circunda, oriundo das águas. A imagem da mulher, a vaidade e sentimento materno estão presentes nas manifestações. Segundo Bachelard (1997), sentimentalmente a natureza é uma projeção da mãe e o mar um dos maiores e mais constantes símbolos maternos, relacionando o liquido ao leite, ao alimento e à proteção. Dentre as inúmeras oferendas feitas a Iemanjá, notamos, além de comidas e bebidas, a presença de diferentes objetos femininos, principalmente, espelhos e água de cheiro, pois a Rainha do Mar é considerada uma entidade muito “faceira”, como disse um morador.

Iemanjá significa “mãe dos filhos-peixes”, enquanto Nossa Senhora dos Navegantes é um dos títulos atribuídos a Maria, mãe de Jesus Cristo, que segundo a tradição católica, começou a receber essa designação quando os que viajavam pelo mar invocavam seu nome em suas orações, pedindo proteção. Portanto, é possível considerar que o sentimento filial está implícito no imaginário desses devotos. No entanto, tal sentimento vai além de um significado e/ou origem do nome, pois segundo Bachelar (1997), o mar em si não é capaz de fascinar o homem, o que acontece é que nossas lembranças inconscientes veem no mar uma fonte de nutrição para o ser, assim como uma mãe. Ou seja, não é o mar que trás o sentimento de amor que temos pela natureza, sim o sentimento materno que é projetado nela, pois “dos quatro elementos, somente a água pode embalar. É ela o elemento embalador. Este é mais um traço de seu caráter feminino: ela embala como mãe (BACHELAR, 1997, p.136).

Portanto, é possível avaliar que ao celebrar tais comemorações e buscar, de certa forma, uma aproximação com o mar, o que se almeja é proteção e um conforto maternal, que tentamos conquistar através de oferendas, festas e manifestações de fé (Figura 5).

 

Figura 5: Cláudia Brandão

Sem título.

Fotografia digital, 2013.

 

As comemorações avançaram a madrugada, embaladas pelas cantorias dos pontos de umbanda e das atividades nos bares e trailers da Praia. No dia 02/02/13 a festividade foi contemplada no centro da cidade, onde aconteceu a celebração católica de Nossa Senhora dos Navegantes. Houve celebração de missa na Igreja Matriz da cidade (Figura 6), e depois a imagem foi transportada para o interior de uma embarcação, que conduziu a procissão marítima (Figura 7).

 

 

Figuras 6 e 7: Amanda Corrêa

Sem título.

Fotografia digital, 2013.

 

A festa na cidade também extrapola o foco religioso e abrange toda população em torno de um momento de socialização coletiva no espaço urbano, onde outras atividades são propostas para entretenimento do público, além da grande movimentação do comércio local. É visível o cuidado estético, com a criação de toda uma ambientação que representa a devoção às santidades e aos imaginários que elas remetem. É recorrente a utilização de flores e bandeirolas para enfeitar o cenário marítimo, que já remetem por si só a valores religiosos.  

Segundo Bachelard, “a imaginação material tem na água a matéria pura por excelência e por isso é tomada como símbolo da pureza natural” (BACHELARD, 1997, p.139). No entanto, para além das questões estéticas, nos deparamos também com as marcas que as comemorações deixam no ambiente, sejam as oferendas ornamentadas que repousam na beira da praia, ou as inúmeras latas de refrigerante, garrafas pets, e tantas outras sobras das festividades que repousam no asfalto da pequena cidade.

Na experiência vivida em São José do Norte, confrontamos as questões estéticas com as éticas; a fé, em suas diferentes manifestações, com suas consequências práticas; o “belo” e o “feio” que a paixão humana pela água pode produzir. E entendemos que se:

 

Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso inesgotável (BACHELARD, 1997, p.10)

 

Sendo assim, concordamos que é preciso também estar atentos para o tênue equilíbrio que norteia as nossas ações frente ao meio ambiente... Cuidadosos com as “sobras” festivas que, muitas vezes, passam a “adornar” a paisagem de um modo singelo e perigoso (Figura 8).

 

Figura 5: Cláudia Brandão

Sem título.

Fotografia digital, 2013.

 

Somos nós e nossos artefatos invadindo o domínio sagrado das águas.

 

 

 

Referências:

 

BACHELARD, Gaston. A água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da

Matéria. São Paulo : Martins Fontes, 1997.

 

LIEBMANN, Hans. Terra, um planeta inabitável? Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1979.

 



[i] Doutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, Artes Visuais – Licenciatura, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação( UFPel/CNPq). attos@vetorial.net

[ii] Pós-graduanda em ”Artes: Ensino e Percursos Poéticos” (CA/UFPel), pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

[iii]  Acadêmica do curso de Artes Visuais – Modalidade Licenciatura (CA/UFPel), pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

Ilustrações: Silvana Santos