Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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10/09/2018 (Nº 42) TRANSVERSALIDADE E COMPLEXIDADE NA ESCOLA: UM TRABALHO COM EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO ENSINO FUNDAMENTAL
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TRANSVERSALIDADE E COMPLEXIDADE NA ESCOLA:

UM TRABALHO COM EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO ENSINO FUNDAMENTAL

 

Ricardo Fernandes Pátaro

Pedagogo, Mestre em Educação (Unicamp), doutorando do Programa de Pós Graduação em Educação da UEM e professor assistente do Depto. de Pedagogia da Universidade Estadual do Paraná, Câmpus de Campo Mourão/Fecilcam

ricardopataro@yahoo.com.br

 

Valdines Ana Pelisser

Professora da Rede Municipal de Ensino de Campo Mourão

valpelisser@hotmail.com

 

 

Resumo: O presente artigo origina-se de pesquisa realizada em escola da rede municipal de ensino de Campo Mourão - PR. O objetivo é discutir as possibilidades que o trabalho com a educação ambiental oferece para a formação ética na escola, a partir dos princípios de transversalidade e complexidade. A pesquisa foi desenvolvida durante o ano letivo de 2010 em uma escola pública com crianças do 2º ano do Ensino Fundamental. Ao longo de um bimestre, foram abordados conteúdos relacionados à problemática do meio ambiente, em uma perspectiva que buscou encarar a educação ambiental como processo de aprendizagem baseado no diálogo e interação entre a realidade vivida por alunos(as) e as matérias disciplinares. Os resultados da investigação apontam que os princípios da transversalidade e da complexidade podem auxiliar no desenvolvimento de uma educação ambiental que atribua significado e articule o aprendizado dos conteúdos curriculares ao cotidiano dos(as) estudantes, almejando não somente o trabalho com os conteúdos, mas também com a formação ética e para a cidadania. Uma versão deste trabalho foi apresentada no IV Encontro Interdisciplinar de Educação – ENIEDUC – na Universidade Estadual do Paraná/Fecilcam, Câmpus de Campo Mourão, no ano de 2011.

Palavras-chave: Transversalidade. Complexidade. Educação ambiental.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Este trabalho apresenta alguns dados de pesquisa oriunda de especialização em educação realizada na Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR/Câmpus de Campo Mourão – PR. Os dados foram coletados em uma classe do 2º ano do Ensino Fundamental de 9 anos durante o ano letivo de 2010, em uma escola da rede pública de Campo Mourão.

O trabalho desenvolvido em sala de aula buscou articular os conteúdos previstos no currículo à preocupação com o uso e preservação da água. Em consonância com os princípios de transversalidade e complexidade que aqui serão discutidos, compreendemos que a conscientização quanto aos problemas ambientais configura-se como uma problemática social, relacionada ao cotidiano de alunos(as). Ao mesmo tempo, acreditamos que abordar o meio ambiente na escola pode contribuir para a formação da cidadania e de valores éticos que envolvem não somente o âmbito individual, mas também o coletivo.

O trabalho tem como pressupostos básicos os princípios da transversalidade (MORENO, 1998, 1999; ARAÚJO, 2002, 2003; PÁTARO, 2008, 2011, 2012) e da complexidade (MORIN, 1990, 2002). Tais princípios nos ajudam a compreender que a educação deve partir da realidade vivida no cotidiano e responder às necessidades de tal realidade. Além disso, de acordo com o referencial com o qual trabalhamos, o trabalho pedagógico deve voltar-se não apenas para a instrução – enfatizando os conteúdos escolares – mas também para a formação ética – compreendendo a importância da construção de valores e do trabalho com princípios de democracia e participação (ARAÚJO, 2002, 2003).

Para dar início abordaremos os princípios de transversalidade e complexidade, que nos ajudam a reorganizar os objetivos da educação atualmente. Em seguida analisaremos o trabalho com educação ambiental que aqui quereremos destacar, entendendo-o como uma possibilidade de prática pedagógica que está de acordo com os princípios de transversalidade e complexidade que embasam o presente artigo.

 

 

1 OS PRINCÍPIOS DA TRANSVERSALIDADE E A INTEGRAÇÃO DE SABERES

 

Como educadores e pesquisadores sempre nos perguntarmos se as disciplinas escolares têm sido estudadas como uma finalidade em si mesmas ou se estão contribuindo para a aquisição de aprendizagens significativas e para a formação de cidadãos e cidadãs preparados para compreender e atuar sobre o mundo em que vivem.

Frequentemente, o que se vê nas escolas é que “[...] as aprendizagens escolares são vividas por alunos e alunas como algo gratuito, cuja única finalidade consiste em passar nos exames” (MORENO, 1998, p. 45). Esta mentalidade deve-se ao fato de que, para as crianças, é muito difícil entender a utilidade das aprendizagens quando são apresentadas como algo que justifica a si mesmo. Sabemos que aprender requer esforço, mas também sabemos que esforço não é, necessariamente, sinônimo de algo que provoca rejeição. Acreditamos que a aprendizagem dos conteúdos pode ser prazerosa e significativa quando se relaciona com as problemáticas sociais vividas no cotidiano e proporciona conhecimento sobre questões urgentes acerca do mundo em que se vive. Afinal, “Nada desanima mais que realizar um trabalho que requer esforço sem que se saiba para que serve” (MORENO, 1998, p.45).

A partir de tais questões, tomamos como pressuposto básico a proposta de Moreno (1998), cujo objetivo é promover uma educação que consiga equilibrar os conhecimentos historicamente adquiridos com a aquisição de conhecimentos baseados em problemáticas atuais e de relevância social para a formação de cidadãos e cidadãs. Nas palavras de Moreno:

 

É preciso retirar as disciplinas científicas de suas torres de marfim e deixá-las impregnar-se de vida cotidiana, sem que isto pressuponha, de forma alguma, renunciar às elaborações teóricas imprescindíveis para o avanço da ciência. Se considerarmos que estas duas coisas se contrapõem, estaremos participando de uma visão limitada, que nos impede contemplar a realidade de múltiplos pontos de vista. (MORENO, 1998, p. 35).

 

Ao impregnar as disciplinas curriculares de vida promove-se a aproximação entre o científico e o cotidiano, o que ajuda a superar uma antiga dicotomia herdada da sociedade grega e do pensamento cartesiano (PÁTARO, 2008, 2012). Além disso, se considerarmos que as aprendizagens escolares relacionadas às diferentes disciplinas curriculares não se destinam à formação de especialistas (MORENO, 1998), temos que o estudo dessas disciplinas não pode ser considerado como uma finalidade em si mesma, mas sim meios para atingir outras finalidades (como a formação intelectual, o desenvolvimento de capacidades de leitura, escrita e de adquirir novos conhecimentos, que precisam ser úteis também fora do âmbito escolar). Assim, o vínculo que se cria entre o estudo das disciplinas curriculares e os temas transversais ajuda a atribuir sentido às aprendizagens escolares. Como nos mostra Pátaro (2008, 2011, 2012), na perspectiva de transversalidade o estudo das matérias curriculares continua sendo importante, mas, ao invés de serem estudadas como um fim em si mesmas, transformam-se em ferramentas para a formação ética, considerando o estudo de problemáticas ataias que tentam conectar a escola com a vida das pessoas. O que se busca, como veremos mais adiante, é o equilíbrio entre dois eixos importantes da educação: a instrução (que ocorre a partir das matérias curriculares) e a formação humana (a partir do trabalho com ética e valores proporcionado pelas temáticas transversais).

Portanto, em um ensino transversal a educação volta-se ao estudo de temáticas que abordam problemáticas sociais, como o respeito ao ambiente ou a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Em outras palavras, as temáticas transversais são assuntos de relevância social. No entanto, é importante destacar que:

 

[...] as temáticas transversais não são novos campos disciplinares e sim áreas de conhecimento que atravessam os campos disciplinares. Nesse sentido, a metáfora que lhe representa pode assumir outras formas geométricas, como a do rizoma, ou a das redes neurais [...] (ARAÚJO, 2003, p. 29).

 

Além disso, a transversalidade “refere-se a temáticas contextualizadas nos interesses e necessidades da maioria das pessoas, e não a conteúdos de natureza científica ou de interesse de pequenas parcelas da população” (ARAÚJO, 2003, p. 29).

Portanto, a transversalidade não pode ser encarada apenas como um pressuposto metodológico, que preza pelo "entrecruzamento" de conhecimentos distintos. Acreditamos que isso é importante, sem dúvida, mas não é suficiente para estabelecer uma mudança nas práticas escolares. De acordo com o que foi exposto até aqui, acreditamos que o trabalho com os princípios da transversalidade na escola carrega também uma mudança epistemológica fundamental, ao inserir no âmbito escolar o questionamento acerca de “que tipo de conhecimentos devem a humanidade e a ciência produzir, e também como fazê-lo na instituição criada pela sociedade para educar as futuras gerações: a Escola” (ARAÚJO, 2003, p. 29-30).

Assim, quando se propõe o estudo de temáticas relacionadas à realidade de alunos(as), as disciplinas clássicas do ensino – como matemática, história, geografia – adquirem significado e passam a contribuir com os objetivos presentes no estudo da realidade. Desse modo, as aprendizagens escolares deixam de ser encaradas como um fim em si mesmas e passam a se relacionar com o cotidiano vivido por alunos(as) em um determinado contexto que é externo à instituição escolar e comum à comunidade na qual estão inseridas a escola e os sujeitos que ali convivem. Além da integração dos conteúdos escolares aos temas transversais, como já dito, a tentativa aqui é a de superar também outras dicotomias, como a existente entre escola e comunidade de entorno, por exemplo, que deriva, de certa forma, da contraposição entre científico e cotidiano. Em resumo, com a proposta da transversalidade, a aprendizagem escolar se volta para:

 

[...] contextos reais nos quais as noções a ensinar adquiram um significado, contextos que não sejam absurdos, mas que tenham um sentido não só para os adultos, mas também para a criança que queremos que maneje os conceitos. [...] Os temas transversais introduzem na escola esta problemática mais ligada ao cotidiano (MORENO, 1998, p. 48-49).

 

A partir de tais ideias, apresentaremos a seguir o pensamento complexo, que dá sustentação aos princípios da transversalidade, na medida em que ajuda a romper com as dicotomias que frequentemente se interpõem no trabalho com os temas transversais na escola.

 

 

2 A COMPLEXIDADE E OS OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO

 

Como vimos anteriormente, o estudo das disciplinas como se fossem o único objetivo da escola pode dificultar o estabelecimento de relações entre conhecimentos científicos e realidade. Ao dicotomizar científico e cotidiano o aprendizado dos conteúdos escolares adquire um fim em si mesmo e a escola se afasta da realidade vivida por alunos(as). Esse afastamento, por sua vez, distancia a escola das temáticas socialmente relevantes que poderiam ligar as diferentes áreas do saber às necessidades da sociedade contemporânea.

É por esse motivo que o trabalho com temáticas transversais em sala de aula adota como ponto de partida as necessidades sociais dos estudantes. Os princípios de transversalidade nos ajudam a pensar de forma diferente as relações e o trabalho com as disciplinas no âmbito da sala de aula, além de colocar crianças e jovens em idade escolar no centro do processo educativo, na tentativa de responder aos problemas sociais. Assim, as temáticas transversais passam a servir de guia para o trabalho escolar e o objetivo da educação deixa de ser apenas o trabalho com os conteúdos, passando a considerar também a necessidade de transformação da realidade em busca de um ensino preocupado com as necessidades da maioria da população.

Desse modo, podemos afirmar que o trabalho com os princípios da transversalidade contempla o que acreditamos serem os dois objetivos da escola: a instrução e a formação ética. A esse respeito, Araújo afirma que o eixo da instrução trata dos conhecimentos construídos historicamente pela humanidade, geralmente transmitidos às futuras gerações pela escola na forma das disciplinas tradicionais. O eixo da formação ética, por sua vez, trata

 

[...] da busca pelo desenvolvimento de alguns aspectos que dêem aos jovens e às crianças as condições físicas, psíquicas, cognitivas e culturais necessárias para uma vida pessoal digna e saudável; e para poderem exercer e participar efetivamente da vida política e pública da sociedade, de forma crítica e autônoma. (ARAÚJO, 2003, p. 30-31)

 

Para refletirmos sobre a necessidade de integração entre instrução e formação ética recorreremos ao pensamento complexo, proposto por Edgar Morin em contraposição ao pensamento simplificante formulado no século XVII por René Descartes.

Primeiramente, precisamos destacar que enquanto o paradigma da simplificação preconiza os princípios de disjunção, redução e abstração – que tendem a fragmentar a realidade em pequenas partes – o paradigma da complexidade, proposto por Morin, supõe considerar que a realidade é formada por “uma extrema quantidade de interacções e de interferências entre um número muito grande de unidades.” (MORIN, 1990, p. 51-52). Assim, o avanço que esse paradigma promove é conseguir coordenar, em uma mesma perspectiva, vários aspectos de uma mesma realidade. Na escola, o pensamento complexo permite que sejam consideradas tanto a importância dos conhecimentos científicos (representados pelas disciplinas curriculares) quanto a importância dos conhecimentos relacionados à realidade social em que vivemos (representados pelas temáticas transversais). Dessa forma, ao olhar para a realidade escolar a partir de múltiplos pontos de vista, os princípios do pensamento complexo permitem considerar a importância da instrução e também da formação ética de crianças e jovens.

Sob a perspectiva da complexidade, portanto, trabalhar com a transversalidade em sala de aula fornece instrumentos importantes para a organização de uma escola que deseja atuar na transformação da sociedade ao mesmo tempo em que instrui as futuras gerações.

Finalmente, acreditamos que olhar para a escola a partir das ideias do pensamento complexo pode ajudar a repensar a estrutura e organização da escola e a implementar as mudanças educativas que se fazem necessárias para a construção de um ambiente escolar no qual crianças e jovens recebam uma formação condizente com as necessidades da sociedade em que vivem. É o que esperamos exemplificar a seguir.

 

 

3 UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO ENSINO FUNDAMENTAL

 

Neste tópico apresentaremos atividades ocorridas ao longo de um trabalho de educação ambiental realizado junto a uma turma de 2º ano do Ensino Fundamental da rede pública de Campo Mourão (A escolha de um trabalho com educação ambiental se deve à realidade vivida no município de Campo Mourão – PR, já que as crianças que fizeram parte do trabalho descrito vivem nas proximidades de um importante rio da região, chamado de Rio Km 119). A prática pedagógica está pautada nos princípios de complexidade e transversalidade expostos anteriormente. Trata-se de um trabalho cujo foco está centrado na formação ética e na educação ambiental. Os(as) alunos(as) protagonistas do trabalho são moradores(as) de um bairro cujo acesso é feito pela travessia do Rio 119. Além disso, muitas dessas crianças usam esse espaço – que se encontra poluído e oferece riscos à saúde – como área de banho e lazer. Diante disso, um dos objetivos do trabalho foi o de trazer para a escola uma temática coerente com as necessidades da maioria da população daquela região e estudada com auxílio das disciplinas curriculares, como veremos a seguir.

O trabalho teve como tema principal a água, assunto escolhido pela professora da turma diante da necessidade de se trabalhar com uma temática de relevância social voltada para a formação ética. Uma vez escolhido o tema a professora planejou uma atividade de aproximação dos(as) estudantes à temática transversal. A intenção aqui era a de levar algumas informações à turma, para que fosse possível iniciar as atividades em torno do assunto. Diante disso, professora, alunos e alunas trocaram ideias a respeito dos problemas atuais que envolvem o uso da água em nossa sociedade e de sua importância para nossas vidas. Nesse momento, estabeleceu-se o ponto de partida do trabalho, quando o assunto escolhido pela professora foi levado até a turma e abordado a partir dos diferentes saberes, experiências e dúvidas das crianças. Com isso, criou-se um vínculo entre os interesses das crianças e o papel docente, ou seja, uma ligação entre o processo de ensino e a realidade concreta vivida por alunos e alunas (ARAÚJO, 2003).

É importante destacar aqui a intencionalidade da ação docente. Junto aos estudantes, a professora – que havia planejado previamente o momento de aproximação – discutiu as diferentes opiniões e conhecimentos prévios das crianças sobre o tema água. Durante essa conversa inicial, surgiram dúvidas essenciais para o planejamento docente. A partir disso, propôs-se a confecção de um desenho para representar, em um primeiro momento, de onde viria a água, na opinião das crianças. A ideia era mobilizar as atenções para questões essenciais que seriam discutidas nas próximas etapas do trabalho, visto que as crianças nunca haviam se perguntado sobre como a água chega até suas casas e não conheciam o processo natural de renovação da água no ambiente (o ciclo da água).

Em seguida, manifestadas as dúvidas das crianças por intermédio dos desenhos e tentativas de escrita, seguiram-se aulas com a utilização de gravuras, vídeos e textos informativos que tratavam sobre o ciclo da água, sua escassez, contaminação, desperdício e preservação – informações essenciais para que as crianças pudessem seguir se aproximando do assunto estudado e trabalhar com os conteúdos previstos na série.

A respeito dos textos utilizados nesse momento, vale lembrar que pautamo-nos em uma concepção de alfabetização que privilegia a exploração e o acesso das crianças à diversidade de textos provenientes de seu cotidiano (CARVALHO, 2007; FERREIRO, 1993; BRASIL, 1997). Assim, embora não seja esse o objeto de nossa discussão, cabe destacar que – no contato com os diferentes textos selecionados pela professora – as crianças tiveram acesso à leitura em voz alta dos materiais; anteciparam os conteúdos de textos escritos a partir de seu contexto; exploraram diferentes materiais portadores de escrita; escreveram com diferentes propósitos e sem medo de cometer erros ou serem sancionadas; interagiram com a escrita para descobrir e inventar; além de utilizar a escrita como um ato social (FERREIRO, 1993). Diante disso, o momento de estudo ao qual nos referimos possibilitou que alunos(as) tivessem contato com uma diversidade de textos e metodologias que proporcionou diferentes informações sobre o assunto água. Vale destacar que a visão de educação que adotamos considera importante tanto os processos de instrução quanto os processos de formação ética. No entanto, é importante pontuar que tais processos não são vistos de maneira dissociada. Assim, nessa etapa do trabalho foram enfatizados, além do tema transversal água, o domínio de diferentes habilidades e conceitos relacionados à escrita e construção da linguagem, contemplando vários conteúdos curriculares.

Além das atividades em torno da escrita, os conteúdos abordados permitiram que as crianças entrassem em contato com informações importantes que foram analisadas, estudadas, discutidas e aprofundadas pela turma. Além disso, as crianças fizeram questionamentos e observações relacionando seu cotidiano às informações de vídeos, livros e notícias. Em sua maioria, as crianças não conheciam o ciclo da água e nem sabiam como ela chega até suas casas. Até aquele momento de estudo, portanto, não tinham ideia do processo de tratamento da água até que volte a se tornar própria para o consumo humano. Assim, no decorrer das atividades, as crianças se lembraram de como ocorre o uso da água em suas residências, refletindo sobre aspectos do cotidiano que costumam passar despercebidos. O conteúdo trabalhado proporcionou, desse modo, um trabalho com a formação ética, na medida em que abriu possibilidade de mudança na postura das crianças com relação ao uso da água – visto agora como recurso natural que pode ficar escasso.

Dando prosseguimento à atividade, as crianças foram convidadas a elaborar uma lista de uso da água em suas atividades cotidianas. Como lição de casa, solicitaram aos pais as contas de água de suas residências. No dia seguinte, com as contas, realizaram uma análise do consumo de água de acordo com a quantidade de pessoas em cada residência. Com ajuda de cálculos matemáticos, dividiram a quantidade de água consumida para cada morador da casa. Assim, puderam quantificar, comparar e qualificar seu consumo, refletindo sobre a variação na quantidade de água que as pessoas utilizam e problematizando tal uso.

Também foram realizadas simulações de pagamento de contas, abordando conteúdos da série como a adição e resolução de problemas com o uso de cédulas e moedas no Sistema Monetário Brasileiro.

A intenção de tais atividades, como já destacado, foi a de abordar os conteúdos curriculares da série não como uma finalidade em si mesmos (MORENO, 1998), mas como meio para se alcançar a formação de cidadãos e cidadãs preocupados com o bem estar individual e coletivo (ARAÚJO, 2003). As matérias curriculares trabalhadas estavam relacionadas à realidade concreta dos(as) alunos(as) e serviram de base para a compreensão da realidade. Assim, acreditamos que os princípios da transversalidade ajudam a entender como os conteúdos trabalhados nessa atividade foram base para uma educação preocupada não somente com a transmissão dos conhecimentos historicamente herdados, mas também com a formação ética de sujeitos capazes de zelar pela vida.

Antes de prosseguir, cabe ressaltar que os princípios da transversalidade adotados pressupõem o contato dos(as) estudantes com sua realidade para que possam, não só conhecê-la, mas buscar estratégias para transformá-la. A partir de tal premissa, a professora planejou uma atividade para que as crianças pudessem estudar a situação do Rio 119, que corta o bairro em que se localiza a escola, no município de Campo Mourão. Para isso foi necessário conhecer a história do bairro e as mudanças ali ocorridas em um dado período de tempo.

Para trabalhar noções de história, a professora, juntamente com a turma, procurou moradores que pudessem contribuir com relatos – além de materiais escritos – de como era o Rio 119 e o bairro no início de sua urbanização. Juntos, conseguiram contato com um dos primeiros moradores da região. Tal morador foi convidado para vir à sala de aula e expor sua história, que transcorreu concomitantemente com o surgimento e desenvolvimento do bairro. A classe recebeu o morador e teve a oportunidade de ouvir suas vivências, que acompanharam o surgimento de problemas no rio 119. Foi uma oportunidade para refletir e entrar em contato com aspectos importantes da intrínseca relação que se estabelece entre o ser humano e o ambiente em que vive, relação que nem sempre é estabelecida de forma sustentável – visto que o Rio 119 encontra-se poluído e deteriorado devido às ações humanas.

Entre outros relatos, as crianças questionaram, participaram e se surpreenderam ao saber que um campo de futebol deu início ao bairro por ser ponto de encontro de algumas pessoas – que acabaram construindo suas casas naqueles arredores. O campo deu lugar à escola em que estudam, que continua sendo um lugar de referência para a comunidade, o que evidencia as mudanças ocorridas no decorrer do tempo.

A conversa com o morador e representante da comunidade local ocorreu na mesma aula em que as crianças entraram em contato com o mapa da cidade e puderam estudar conteúdos geográficos. Além disso, acreditamos que a articulação entre comunidade e escola é uma alternativa no desenvolvimento de uma educação que valorize as possibilidades de formação presentes nos espaços não escolares e que respeite os valores e cultura da comunidade local. Cabe lembrar que a articulação entre escola e comunidade é uma das formas de considerar os dois eixos da educação destacados no início do trabalho – a instrução e formação. A esse respeito, Subirats afirma:

 

A comunidade-escola não pode ficar reduzida a uma instituição reprodutora de conhecimentos e capacidades. Deve ser entendida como um lugar em que são trabalhados modelos culturais, valores, normas e formas de conviver e de relacionar-se. É um lugar no qual convivem gerações diversas, em que encontramos continuidade de tradições e culturas, mas também é um espaço para mudança. A comunidade-escola e a comunidade local devem ser entendidas, acreditamos, como âmbitos de interdependência e de influência recíprocas, pois [...] indivíduos, grupos e redes presentes na escola também estarão presentes na comunidade local, e uma não pode ser entendida sem a outra (SUBIRATS, 2003, p. 76).

 

Desde o início do trabalho, a intenção era relacionar os estudos em classe com a situação concreta do Rio 119, que acompanha a área agrícola de Campo Mourão. Esse Rio faz parte da realidade cotidiana de alunos(as) e, por toda sua extensão, é visível a situação de degradação, o despejo de esgoto, resíduos de adubo e agrotóxicos das plantações, além do problema da deterioração da mata ciliar.

Já que uma das atividades corriqueiras das crianças consistia em brincar nas águas do Rio 119, a professora planejou uma visita para que fossem analisados os riscos à saúde que a água do rio poderia trazer. Assim como em outros momentos, a participação das crianças no planejamento da atividade foi fundamental para que fossem consideradas protagonistas do trabalho. Portanto, para que o envolvimento das crianças na questão ambiental seja integral, devem participar do planejamento e execução das atividades (ARAÚJO, 2003).

Diante disso, a proposta feita pela turma foi coletar a água do Rio 199 para encaminhar à análise de um laboratório especializado (que posteriormente indicou contaminação). Somente assim foi possível levantar informações para além da análise visual que seria feita às margens do rio.

A coleta da amostra de água foi realizada pelas crianças às margens do rio. O momento foi de observação e participação, aproximando alunos e alunas à realidade. Por se tratar de uma atividade prática, o estudo às margens do Rio 119 permitiu a construção de conhecimentos a partir da própria realidade social vivida pelas crianças em sua comunidade.

Durante o estudo, alunos(as) presenciaram o depósito de esgoto do bairro nas águas do rio, o mau cheiro, o estado de deterioração da mata ciliar, o processo de assoreamento, a falta da vegetação nativa, entre outros aspectos que demonstravam o abandono em que se encontrava o local.

Vale registrar que, após o estudo prático-experiencial no Rio 119, a professora organizou experiências no laboratório de ciências da escola com o objetivo de trabalhar conteúdos e conceitos importantes. Algumas das experiências relacionavam-se à:

 

- construção de filtros e observação de processos de decantação, evaporação e condensação para verificar como materiais podem se dissolver na água, provocando sua contaminação (BRASIL, 1997);

 

- acompanhamento da ação de um vaporizador para estudar os conceitos de troca de calor e estados físicos da água (BRASIL, 1997);

 

- observação de plantas e caramujos em terrário, destacando a importância da água na vida dos seres vivos;

 

- observação de torneiras com problemas e produção de carta enviada pela turma aos responsáveis pelo reparo.

 

Em resumo, cada atividade procurou-se relacionar, de maneira transversal, alguns aspectos da problemática da água e os conteúdos curriculares da série. Algumas dessas atividades foram exemplificadas no decorrer de nosso artigo e esperamos ter exemplificado como é possível auxiliar alunos e alunas na reflexão sobre as diferentes formas de atuar na realidade para que as problemáticas sociais sejam compreendidas e amenizadas, buscando, assim, uma convivência mais equilibrada entre os seres humanos e o ambiente em que vivem.

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O presente artigo teve como objetivo apresentar uma experiência de educação ambiental junto a crianças das séries iniciais do Ensino Fundamental. Partimos do princípio de que à escola cabe não apenas a responsabilidade de trabalhar com os conteúdos curriculares, mas também com a formação ética, buscando a formação integral de sujeitos autônomos e críticos, capazes de indignarem-se frente às problemáticas sociais.

Os pressupostos teóricos que fundamentam a prática pedagógica apresentada contemplam os princípios da transversalidade de Montserrat Moreno (1998, 1999), que propõem o estudo de temáticas relacionadas à realidade de alunos e alunas em conjunto com as disciplinas clássicas do ensino, de maneira que as aprendizagens escolares deixem de ser tomadas como um fim em si mesmas e passem a se relacionar com contextos reais significativos; os princípios do pensamento complexo de Edgar Morin (1990, 2002), que implicam em olhar para a realidade escolar a partir de múltiplos pontos de vista; e as ideias de Araújo (2002, 2003), que articulam a transversalidade e a complexidade em torno dos objetivos da educação na contemporaneidade, educação que deve passar a considerar tanto a importância da instrução quanto da formação em valores.

Na experiência de educação ambiental junto a uma turma do segundo ano do Ensino Fundamental, buscamos demonstrar como é possível articular os conteúdos construídos pela humanidade às temáticas transversais que trazem para o interior da escola preocupações sociais relacionadas ao cotidiano de alunos e alunas.

Sabemos que a proposta de trabalho apresentada no presente artigo não é a única existente e temos consciência também da necessidade constante de refletir sobre possibilidades de uma escola mais aberta à vida das pessoas. Esperamos, no entanto, ter conseguido demonstrar como o conhecimento escolar, visto a partir da perspectiva da transversalidade e da complexidade, pode se tornar mais significativo para alunos e alunas das séries iniciais do Ensino Fundamental, contribuindo para a formação de cidadãos e cidadãs que lutem contra o imobilismo social e saibam buscar uma vida mais justa e digna para todas as pessoas de nossa sociedade.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ARAÚJO, Ulisses Ferreira. A construção de escolas democráticas: histórias sobre complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Moderna, 2002.

 

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BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ciências naturais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997.

 

CARVALHO, Marlene. Guia prático do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2007.

 

FERREIRO, Emilia. Os objetivos da alfabetização inicial. In: Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 1993.

 

MORENO, Montserrat et al. Temas transversais em Educação: Bases para uma formação integral. São Paulo: Ática, 1998.

 

______. Falemos de sentimentos: a afetividade como um tema transversal. São Paulo: Moderna, 1999.

 

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

 

______. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2002.

 

PÁTARO, R. F. O trabalho com projetos na escola: um estudo a partir de teorias de complexidade, interdisciplinaridade e transversalidade. Dissertação de Mestrado – FE – UNICAMP, Campinas, 2008. Disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000438560>. Acesso: 25 jul. 2012.

 

PÁTARO, R. F. & PÁTARO, C. S. O. Temas transversais e o trabalho com projetos: uma experiência nas séries iniciais do ensino fundamental. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 127, p. 48-55, dez. 2011. Disponível em: <http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13132>. Acesso: 25 jul. 2012.

 

PÁTARO, R. F. & BOVO, M. C. A interdisciplinaridade como possibilidade de diálogo e trabalho coletivo no campo da pesquisa e da educação. Revista NUPEM, Campo Mourão, v.4, n.6, p. 45-63, jan./jul. 2012. Disponível em: <http://www.fecilcam.br/revista/index.php/nupem/article/viewFile/191/160>. Acesso: 25 jul. 2012.

 

SUBIRATS, J. Educação: responsabilidade social e identidade comunitária. In: GÓMEZ-GRANELL & VILA (org.). A cidade como projeto educativo. Porto Alegre: Artmed, 2003.

Ilustrações: Silvana Santos