Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Breves Comunicações
04/06/2012 (Nº 40) Colher o fruto sem plantar a árvore
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Educação Ambiental em Ação 40

Colher o fruto sem plantar a árvore

 

Valdir Lamim-Guedes

Universidade Nacional de Timor-Leste

 

 

 

 “Nela, até agora não pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro; nem as vimos. Mas, a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados, como os de lá. Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.” Com essas palavras, a 1º de maio de 1500, o escrivão Pero Vaz de Caminha (1450-1500) comunica ao rei de Portugal, Dom Manoel I (1469-1521), a descoberta da costa brasileira.

 

Uma descoberta que poderia atender aos anseios portugueses de “colher o fruto sem plantar a árvore”, expressão utilizada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) para descrever o ideal de obter riquezas extraindo-as das novas terras descobertas nas grandes navegações, sem grandes investimentos nas colônias e sem preocupação com as consequências dessa exploração.

 

Dois momentos da história brasileira – o ciclo do ouro em Minas Gerais, no século 18, e a expansão da fronteira agrícola na Amazônia, na década de 1970 – podem ser enquadrados nessa mesma linha de pensamento. Esses períodos apresentam características em comum, como degradação ambiental e desigualdade social, e servem de exemplo para que a proposta de alteração do Código Florestal, atualmente em discussão no Congresso Nacional, seja reavaliada para evitar um grande perigo socioambiental.

 

MINERAÇÃO E DEGRADAÇÃO Ao escrever sua carta, Caminha não podia saber que menos de dois séculos depois o ouro seria descoberto em uma região distante do litoral, que seria chamada “das Minas Gerais”, nos locais onde hoje estão situadas as cidades de Ouro Preto (antiga Vila Rica), Mariana e Sabará. Todas se desenvolveram em função do ouro e tornaram-se oficialmente vilas em 1711. Essa descoberta desencadeou a primeira grande corrente migratória de Portugal para o Brasil, além de estimular migrações internas para as regiões auríferas.

 

A chegada de migrantes e a riqueza em circulação induziram em Vila Rica (Ouro Preto) e Mariana um rápido processo de urbanização. Escolhida em 1720 como capital da recém-criada capitania de Minas Gerais, Vila Rica tornou-se rapidamente a cidade mais populosa da América Latina, com cerca de 80 mil habitantes em 1750. Boa parte dessa população era formada por escravos. Na mesma época, Nova York tinha menos da metade dessa população e a vila de São Paulo não tinha mais que 8 mil habitantes.

 

Essa região foi a principal área de extração de ouro no Brasil no século 18. Só nesse século foram enviadas a Portugal, oficialmente, 800 toneladas de ouro, sem contar a quantidade extraída de forma ilegal, fora do controle da corte portuguesa, e o que ficou na colônia enfeitando suntuosas igrejas, como a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto, em cuja decoração foram utilizados 800 kg de ouro e prata.

 

Diversos relatos de viajantes que passaram pela região das minas incluem descrições da degradação ambiental, como assoreamento dos rios, ausência de mata ciliar, águas barrentas, áreas desmatadas e queimadas. O barão von Eschwege – o mineralogista alemão Wilhelm L. von Eschwege (1777-1855) – viveu em Ouro Preto no início do século 19 e observou: “Revolvendo-se frequentemente as cabeceiras dos rios, estas se carregam cada vez mais de lama, a qual se foi depositando sobre a camada rica [em ouro], alcançando de ano para ano maior espessura, tal como 20, 30 e até 50 palmos. Por esse motivo, as dificuldades tornaram-se tão grandes que não se pode mais atingir o casca-lho virgem”. Com a exploração predatória, e com o progressivo esgotamento das reservas, a produção do ouro teve forte redução ao longo do século 19, levando a uma estagnação das cidades da região dos garimpos mineiros, que antes cresciam rapidamente.

 

OCUPAÇÃO E DESTRUIÇÃO O mesmo cenário repetiu-se em grande parte da região amazônica na década de 1970. Os governos militares incentivaram a derrubada da floresta, sob o argumento de promover o desenvolvimento da região. Fazia parte dessa campanha o bordão “Homens sem terra para uma terra sem homens”. Esse lema era uma mentira dupla, porque a Amazônia não era uma terra sem homens, já que ali viviam ribeirinhos, seringueiros e indígenas, com modos de vida mais adaptados à floresta, e porque os ‘homens sem terra’, na verdade, eram camponeses, em sua maioria nordestinos, expulsos de suas terras pela seca.

 

Esse processo de ocupação, no entanto, não foi convertido em desenvolvimento social com qualidade ambiental. O que se vê atualmente, em praticamente todas as áreas onde ocorreram os projetos oficiais de colonização da Amazônia nos anos 1970, são pastagens degradadas e pouco produtivas, índices altíssimos de violência no campo, cidades sem saneamento básico e com sistemas de educação e saúde precários. Na verdade, os governos militares atraíram muitas pessoas para a região amazônica, mas faltou trazer o estado de direito.

 

Nesses dois casos, o ciclo do ouro e a ocupação da Amazônia, o cenário sempre foi de enorme contraste entre riqueza e pobreza, com grande degradação ambiental. Parte dessa situação está associada à noção de que o crescimento econômico baseado na utilização de nossos recursos naturais apresenta um dilema: proteger ou desenvolver. Esse é um falso dilema. No Brasil, como em quase todo o mundo, é fácil observar que a renda obtida com a extração das riquezas naturais não é dividida igualmente. O desenvolvimento econômico, tanto no caso dos garimpos do século 18 quanto no caso da colonização da Amazônia, enriqueceu uma pequena minoria. O que se viu foi a concentração do lucro e o compartilhamento dos prejuízos – a degradação ambiental e a deterioração das condições de vida da população, por exemplo.

 

LUCRO FÁCIL A solução para o fim da miséria no país não é acabar com o Brasil. Ao contrário, a valorização da floresta, dos campos e da imensa biodiversidade do nosso território permitirá criar oportunidades para gerar riqueza de forma sustentável (social, econômica e ambiental). De acordo com essa perspectiva, é evidente que o Brasil não terá ganhos econômicos com a aprovação das alterações ao Código Florestal. As normas agora propostas implicarão significativas perdas de áreas com vegetação natural ainda existentes nos biomas brasileiros e comprometerão compromissos assumidos pelo Brasil em acordos internacionais de redução de emissões de carbono para a atmosfera e de proteção à biodiversidade.

 

A ideia de desenvolvimento que embasa essa proposta de alteração do Código Florestal repete de certo modo a concepção expressa em “colher o fruto sem plantar a árvore”. Ou seja, algumas das normas em discussão consagram a obtenção de lucro fácil, sem maior preocupação com as consequências da atividade exploratória. Como o argumento para a facilitação dos desmatamentos é a necessidade de aumentar a produção, pode-se dizer que a árvore será plantada, mas também será cortada logo após a colheita, impedindo que produza frutos para as próximas gerações. Isso porque a grande degradação ambiental incentivada pelo novo Código colocará em risco a própria produção agrícola e o bem-estar da população no futuro.

 

Nesse momento, em que a opinião de experimentados cientistas não está sendo considerada por uma grande parcela dos parlamentares, é muito adequado citar a observação sobre a degradação ambiental feita em 1817 pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), quando viajava pela província de Minas Gerais: “É aí [nas florestas] que a natureza mostra toda a sua magnificência, é aí que ela parece desabrochar na variedade de suas obras; e, devo dizer com pesar, essas magníficas florestas foram muitas vezes destruídas sem necessidade”.

 

Fonte original do texto: LAMIM-GUEDES, V. . Colher o fruto sem plantar a árvore. Ciência Hoje, v. 292, p. 60-61, 2012

Ilustrações: Silvana Santos