Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Reflexão
10/09/2018 (Nº 38) A utopia de um Decrescimento
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Revista Educação Ambiental em Ação 38

A utopia de um Decrescimento

Aloísio Ruscheinsky*

 

Esteve na Unisinos, entre 22 a 25 de novembro, o economista Serge Latouche, uma das principais referencias na construção das bases da utopia para a articulação de um futuro sustentável. A principal temática é a proposta do descrescimento ou inverter as prioridades em face da degradação humana e ambiental. Importante destacar desde logo que a proposição do decrescimento não é algo similar ao crescimento negativo, pois este está na atualidade se mostrando uma tragédia. Ao mesmo tempo um crescimento infinito é incompatível com um planeta finito.

Para comentar a sua utopia apresenta pontos de fundamentação da proposta do descrescimento e para contribuir com a descolonização do nosso imaginário [em lugar dos 3Rs formula um decálogo ou os 10 Rs do programa reformista do decrescimento]:

1)      Reencontrar uma pegada ecológica sustentável e sermos bons jardineiros do planeta com um consumo equitativo dentro da capacidade de reposição do ecossistema e da biodiversidade; pois o decrescimento é também uma arte de viver – mais do que uma necessidade da economia. Quando o mal-estar aumenta, multiplicam-se as condutas de risco .... por isto a ótica do descrescimento constitui um apelo à traição da lógica ou da ordem estabelecida, como por exemplo, trair o mandato da opulência, o medo do tédio e a vocação à obesidade.

2)      Reduzir os custos do transporte derivados da internacionalização por isto desaceleração e regionalização, ou seja, desglobalização - e criar ecotaxas apropriadas pois os usuários de carro não pagam efetivamente os efeitos causados pelos impactos;

3)      Relocalizar as atividades em geral, com favorecimento da produção e do consumo local no que diz respeito à alimentação ou visar o deslocamento zero dos alimentos ou próximo disto, o que constitui um desafio para rever a relação entre global e o local, entre a universalidade, a pluralidade e a diversidade.

4)      Restaurar a economia de produtos orgânicos e sazonais e ter tempo para degustar os pratos da terra em oposição à artificialidade e do fast food; A diversidade biológica se perde com a produção homogênea ou em grande extensão ou com a preocupação centrada na produtividade.  Até o momento a modernidade já reduziu em alguns setores ou espaços em 3 a 4 vezes a biodiversidade existente.

5)      Redestinar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e criação de mais empregos, pois em três décadas a produtividade do trabalho se multiplou dezenas de vezes com aplicação de novas tecnologias, porém não se encolheu a jornada e a intensidade de trabalho e nem se humanizou o ganha-pão. A droga mais incrível do que o trabalho [se ainda somos alcoólatras do trabalho] é o hiperconsumo, razão pela qual estendemos a jornada de trabalho. Isto produz o que se denomina de felicidade paradoxal: somos campeões no consumo de antidepressivos!

6)      Relançar a produção de bens relacionais - algo que possa e que tenha a primazia de ser compartilhado - fundados na reciprocidade ou convivência, no saber, no amor, em oposição à apropriação e privatização da água, do ar, da terra, do espaço ou dominação e expropriação dos processos biológicos em relação à biodiverdidade.

7)      Reduzir o desperdício no consumo de energia, seja seu uso direto e as formas de uso indireto;  e se organizássemos melhor todo nosso cotidiano poderíamos reduzir em algumas vezes de imediato o nosso consumo de energia

8)      Restringir fortemente o espaço e a voracidade do apelo publicitário, pois este produz o principal câncer da atualidade que é o ímpeto desmedido ao consumo, bem como incentiva em desmedida nossa obsessão pela velocidade, quantidade, abundância; a publicidade cria uma lista sem fim de necessidades no imaginário e uma iniciativa possível seria eliminar toda publicidade no transcurso de programas destinados à infância, cujo política pública teria o efeito similar às restrições ao álcool e à pornografia.

9)      Reorientar a pesquisa tecnocientífica, a obsolescência planejada, a racionalidade instrumental e a larga dependência do petróleo. A saúde pública na pos-modernidade é uma luta inglória pois as exigências sem os resultados desejados só tendem a aumentar pelos efeitos perversos do progresso, dos riscos, do consumo, do mal-estar, da insatisfação persistente.

10)  Reapropriar-se do dinheiro ou romper com a subordinação, mas submetê-lo à perspectiva humanística; ou ainda as experiências de moeda local constituem uma poderosa alavanca para encontrar um lugar fora do produtivismo. A crise atual revela que a moeda está demasiadamente dominada pelas mãos fechadas dos banqueiros!  

 

Cabe acrescentar outros [cuja lista criativamente é extensiva].

1) Religar sociedade e natureza, mas abdicar da religião do mercado ou da adesão irrestrita à lógica do mercado com características religiosas, o que em outros termos nos permite ser agnósticos ou ateus em face do mito do crescimento ilimitado; a blasfêmia do descrescimento consiste em renegar as benesses do mito do desenvolvimento.

2) Reconceituar a nossa visão de riqueza e de justiça, pois há muitas formas de compreende-la e uma nova relação com o pólo da pobreza ou em oposição à frugalidade, abstenção. A economia tornou a parcimônia, o comedimento um valor negativo – da mesma forma que as camadas empobrecidas. A escassez é uma invenção da economia moderna e se puder vai querer inclusive privatizar o dom, a gratuidade, etc.

3) Reeducação alimentar para combater a principal doença contemporânea em decorrência da alimentação que é a obesidade, que significa igualmente o empenho contra o desperdício e a favor de comedimento. Na alimentação familiar pode ocorrer a acomodação dos restos ou de resíduos de outros pratos ou do que usualmente não compõe os pratos nobres. Somos tóxico-dependentes do consumo [ou do crescimento] ou seduzidos pelas aparências ou pela dimensão estética dos alimentos e dos produtos em geral.

4) Reencantar-se com um ciclo virtuoso ou de abundancia frugal e da sobriedade, pois para uma sociedade do descrescimento torna-se fundamental sair do mundo encantado do mito do desenvolvimento como condição de bem estar e de justiça social.

Estas são algumas considerações para o reencantamento de nosso viés utópico.

 


 

*    Aloísio Ruscheinsky,  sociólogo, doutor pela USP. Foi professor e pesquisador no PPG em Educação Ambiental (PPGEA) da FURG-RS. Atualmente é docente e pesquisador no PPG de Ciências Sociais da Unisinos, São Leopoldo/RS e coordenador do grupo de pesquisa Ambiente e Sociedade. Organizador do livro “educação ambiental: abordagens múltiplas”, editora Artmed.

 

Ilustrações: Silvana Santos