Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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04/06/2011 (Nº 36) Áreas úmidas: registros únicos da vida de todos nós
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Áreas úmidas: registros únicos da vida de todos nós

 

           

Soraia Girardi Bauermann*

*Doutora em Geociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Professora da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). soraia.bauermann@ulbra.br

            

            

           

Resumo: As zonas úmidas são importantes ecossistemas no que tange a diversidade ambiental, endemismos e bem estar social. Entretanto, a atividade antrópica desenfreada tem extinguido muitas destas áreas devido a poluição, crescimento populacional e drenagem, entre outros fatores. Nesse contexto, é indispensável a percepção dessas áreas úmidas como arquivos únicos de história das mudanças vegetacionais como forma de mitigação desse processo. Além do mais os microfósseis contidos nestes depósitos são a única fonte de informação da vegetação original, isto é, sem interferência humana, e seu estudo fornece dados para a recuperação de áreas degradadas e manejo dos remanescentes florestais. Esses estudos podem servir para a construção de modelos regionais de implantação e aceleração do processo de desenvolvimento da vegetação, além de constituir banco de dados de essências nativas úteis para projetos de florestamento. Além do mais, a partir do momento em que identificamos, através de evidências concretas, as conseqüências de nossas atitudes em relação ao ambiente mais fácil fica a contextualização das práticas pedagógicas e a conscientização ambiental.

 

            

Palavras-Chave: áreas úmidas, grãos de pólen, conscientização ambiental.

            

            

            1. Introdução

            

As zonas úmidas – ecossistemas formados pelo conjunto de lagos, lagoas, pântanos e outros tipos de áreas alagáveis – provêm alimentação, retêm carbono, regulam o fluxo de água, abrigam espécies endêmicas desempenhando papel fundamental para o equilíbrio ecológico.  Além disso, por suas características únicas podem também preservar por milênios diminutos fósseis de plantas - os microfósseis (cujo tamanho diminuto varia de aproximadamente um centésimo a um décimo de milímetro).

 

Estes ecossistemas proporcionam serviços ambientais que podem ajudar a combater os efeitos das mudanças climáticas e reduzir a perda da biodiversidade, além de proporcionar benefícios que acarretam o bem estar social de comunidades circunvizinhas. Cerca de 4-6% da área continental terrestre mundial está coberta por áreas úmidas, no entanto, estima-se que 50% das áreas úmidas originais já foram perdidas (Dugan, 1993) devido a expansão das grandes cidades, poluição e agricultura (Mitsch & Gosselinki, 2000).

 

O conceito de áreas úmidas foi incrementado a partir de 1971 após a assinatura da Convenção de Ramsar, tratado intergovernamental celebrado no Irã e que tem por missão:

 

 “a conservação e uso inteligente de todas as zonas úmidas através de ações locais, regionais e nacionais e cooperação internacional, como uma contribuição para o alcance do desenvolvimento sustentável por todo o mundo”.

 

O Brasil juntamente com outros 149 paises é signatário desta Convenção e se propôs a envidar esforços no sentido de preservar as áreas úmidas em território nacional. Para tanto, são necessárias ações de planejamento e tomada de decisões em um amplo raio de hierarquias administrativas, mas também inclui atitudes no sentido de disseminar conhecimento técnico e orientação, elaboração de modelos e redes de apoio que ajudem a colocar esses saberes teóricos em prática.

O estudo do ambiente é transdisciplinar (BARBOSA, 2004) e as áreas úmidas por sua complexidade, diversidade e importância para a comunidade podem tornar-se um recurso para despertar e desenvolver consciência ambiental rompendo fronteiras entre diferentes disciplinas.

 

 

 

2. Os microfósseis e as áreas úmidas

 

As plantas para a sua perpetuação produzem estruturas de reprodução como os grãos de pólen (gimnospermas e angiospermas) e os esporos (samambaias, fetos, licopódios).

Os grãos de pólen e esporos não utilizados na reprodução das plantas podem ser transportados pelo vento ou pela água e irão se depositar no solo, nos lagos, nos banhados, ficando aí preservados e misturados as demais partículas inorgânicas que constituem esses ambientes (Fig. 1).

 

 

Fig. 1. Ilustração de área úmida mostrando o modo de transporte e deposição dos microfósseis.

 

A deposição destas estruturas ano após ano vai sendo acumulada numa organização estratigráfica, ou seja, vão constituir camadas sucessivas de sedimentos, onde estão incluídos os grãos de pólen e esporos depositados em ordem cronológica (Fig. 2).

 

 

Fig. 2. Ilustração de área úmida mostrando a formação das camadas de deposição formadas pelo acúmulo de grãos de pólen, esporos e demais substâncias inorgânicas.

 

As zonas úmidas são locais especialmente propícios para a deposição e preservação dos grãos de pólen e esporos, pois o alto teor de umidade torna o ambiente anaeróbico, enquanto a alta taxa de acidez impede o desenvolvimento excessivo de microorganismos que poderiam destruir a camada externa destes microfósseis. Porém, mesmo sob condições anóxicas, muitos compostos orgânicos ainda podem ser fermentados. Todavia, substâncias orgânicas que não possuem oxigênio como terpenos, ácidos graxos superiores, esteróides, porfirinas e carotenos não sofrem qualquer tipo de fermentação uma vez que a respiração intramolecular é dificultada sob estas circunstâncias (Rheinheimer, 1987). Logo, estes ambientes são altamente propícios a preservação de grãos de pólen, uma vez que a parede celular dos grãos de pólen e esporos que está constituída por uma mistura de vários grupos químicos como derivados de ácidos graxos e componentes fenólicos permanece inalterada ao longo do tempo (Scott,1994 ).

 

Estima-se que anualmente em cada hectare de banhado deposita-se em torno de 6 a 10 kg de grãos de pólen o que perfaz uma média de 15 a 20.000 grãos/ano/cm2 ou 50 grãos/dia/cm2 provenientes, via atmosfera, da vegetação local e adjacências (Margalef, 1983).

           

 

3. Áreas úmidas como arquivos da vida

 

            Através da extração dos grãos de pólen e esporos desses ambientes especiais é possível analisar suas características e identificar de que planta eles são originários. Assim, a deposição temporal e seqüencial dos grãos de pólen e esporos em áreas úmidas torna estes depósitos excelentes áreas para desenvolvimento de trabalhos que objetivem a reconstituição vegetacional e/ou climática. Isto é possível porque os sedimentos estão em ordem estratigráfica o que significa dizer que a camada inferior possui grãos de pólen e esporos da vegetação mais antiga e as camadas superiores apresentam microfósseis da vegetação mais moderna. Conhecendo a vegetação de cada camada é possível reconstituir a paisagem e inferir dados sobre o clima daquela época (Fig. 3).

 

Em 1916, von Post, publicou o primeiro trabalho de reconstituição vegetacional com base em grãos de pólen e esporos extraído de depósitos. Este autor mostrou que a partir de sedimentos podem-se retirar amostras em profundidades específicas, processá-las quimicamente através de tratamentos ácidos, concentrar os resíduos tratados e confeccionar lâminas contendo os microfósseis para observação em microscópio. Ou seja, para diferentes profundidades conhecidas no depósito sedimentar teremos os registros de aparecimento, expansão e retração dos grãos de pólen provenientes de cada planta.  De posse desses dados e através de análises estatísticas teremos então o espectro polínico de uma região. Os gráficos com os espectros polínicos exibem as mudanças na vegetação e no clima de cada época. Por exemplo, a ocorrência de grãos de pólen de AraucariaPodocarpus  e esporos de Dicksonia aponta a ocorrência de uma Mata da Araucaria sinalizando um clima mais frio para aquela camada. 

 

Por outro lado podemos pensar na contextualização sociocultural deste conhecimento, uma vez que diferentes grãos de pólen podem atestar diferentes situações etnoculturais. A presença de grãos de pólen de milhos, em tempos remotos pode sinalizar a presença de cultivos indígenas na região, enquanto a presença dos pinus pode indicar a chegada do colonizador europeu.

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 3. Ilustração do modo de extração das camadas de deposição onde os estratos basais são mais antigos e os de topo mais jovens.

 

 

4. Considerações Finais

 

Sempre nos preocupamos com a qualidade do ambiente dos próximos anos, mas esquecemos que para planejar o futuro é preciso conhecer o passado. Uma das maneiras de conhecer o passado distante é pelo estudo dos grãos de pólen e esporos, estruturas envolvidas na reprodução das plantas.

 

Nos dias atuais a sociedade vem empreendendo esforços na busca de caminhos a serem trilhados para uma convivência harmoniosa entre as questões ambientais, econômicas e sociais. Muitas mudanças já ocorreram no que diz respeito ao trato com os recursos naturais que passaram a ser vistos com mais responsabilidade e como bens que podem se esgotar. No entanto, muito há ainda por fazer, pois a preservação da biodiversidade é uma tarefa complexa que requer esforços e mudanças de atitudes de todos e de cada um de nós.

 

Nessa busca os esporomorfos (microfósseis relativos a estruturação de reprodução das plantas) contidos nos sedimentos das áreas úmidas  são aliados fundamentais uma vez que são a única fonte de informação da vegetação original, isto é, sem interferência humana, e seu estudo fornece dados para a recuperação de áreas degradadas e manejo dos remanescentes florestais. Esses estudos podem servir para a construção de modelos regionais de implantação e aceleração do processo de desenvolvimento da vegetação, além de constituir banco de dados de essências nativas úteis para projetos de reflorestamento. A seguir ressalta-se algumas idéias consideradas mais importantes no que diz respeito às áreas úmidas como importante objeto para construção do conhecimento:

            

  - Embora esforços venham sendo realizados, existe, ainda, carência de estudos em áreas úmidas no território brasileiro;

 

 - O conhecimento dos microfósseis, sua identificação e quantificação são fatores cruciais para a compreensão da rede de interações biológicas ocorrentes nestes ecossistemas;

            

 - O estudo das áreas úmidas tem relevante importância para o conhecimento da vegetação original e na busca de essências florestais nativas. 

 

- As áreas úmidas e os microfósseis ali encerrados são fonte única de conhecimento para elaboração de uma modelagem climática.

 

- Pelo seu importante papel ecológico, social e como arcabouço de informações únicas é imprescindível a preservação destas áreas;

 

- As áreas úmidas têm que ser vistas, não só como manancial de serviços ambientais, mas também como um recurso didático a ser utilizado como fonte de aprendizagem significativa para os alunos e comunidade.

 

 

Estudos em áreas úmidas realizados no Brasil estão distantes do enfoque sócio-cultural que estes ecossistemas representam para a comunidade. Em sua maioria têm como principal objetivo estudos de levantamento de fauna,  flora, endemismos, ecologia e reconstituição ambiental. Essa pesquisa visa mostrar através das informações bibliográficas disponíveis a importância destes estudos como fonte para maior conscientização ambiental uma vez que através do estudo dos microfósseis encerrados nestes ambientes pode se revelar a história passada da região e a influência da ação antrópica de nossos antepassados na configuração da paisagem atual. Desta maneira estaremos contextualizando o conhecimento sobre estes ecossistemas e promovendo a educação para a cidadania de maneira que os cidadãos possam interpretar a realidade de maneira consciente.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DUGAN, P. 1993. Wetlands in danger. Michael Beasley. Reed International Books, London.

Mitsch, W.J.; Gosselinki, J.G. 2000. Wetlands. Third edition. John Wiley & Sons, Inc. Columbus, Ohio.

http://www.ibama.gov.br/siucweb/guiadechefe/guia/u-4corpo.htm

BARBOSA, M. P. Geoprocessamento Aplicado a Degradação das Terras. Universidade Federal de Campina Grande, CTRN, Apostila, 17p, 2004.

Rheinheimer, G. 1987. Microbiologia d las agues, editora Acribia S.A, Zaragoza, 299 p.

Scott, R.J. (1994). Pollen exine: The sporopollenin enigma and the physics of pattern. In Molecular and Cellular Aspects of Plant Reproduction, R.J. Scott and A.D. Stead, eds (Cambridge, UK: Cambridge University Press), pp. 49–81.

 

 

 

 

           

Ilustrações: Silvana Santos